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A indepedência do magistrado e o desvio de poder nos atos jurisdicionais

 

 

 

Marcelo Harger

 

1- Introdução:

 

                                   O meio jurídico brasileiro já há algum tempo tem assistido debates acerca das súmulas vinculantes. Nota-se, claramente, a existência de duas correntes opostas, uma a favor e outra contra a adoção das referidas súmulas. Os partidários desta segunda tese utilizam como argumento principal a liberdade de convencimento do juiz.

                                   O objetivo do presente trabalho é analisar perante o ordenamento jurídico brasileiro atual os contornos do princípio do livre convencimento do juiz. Procurar-se-á analisar, dentro desse tema, mais especificamente a seguinte questão: pode o magistrado brasileiro, perante o ordenamento jurídico atual, concordar com uma certa tese, mas não respaldá-la em sua sentença devido à existência de jurisprudência dominante contrária à referida tese?

                                   Desde logo adiantamos que a resposta à pergunta formulada é “não”. Passaremos a demonstrar as razões de nossa afirmação. 

2-  Os juízes como agentes públicos:

                                   A doutrina confere às pessoas físicas que atuam em nome do Estado a denominação de agentes públicos. José dos Santos Carvalho Filho assim os conceitua:

“A expressão agentes públicos tem sentido amplo. Significa o conjunto de pessoas, que a qualquer título, exercem uma função pública como prepostos do Estado. Essa função, é mister que se diga, pode ser remunerada ou gratuita, definitiva ou transitória, política ou jurídica. O que é certo é, quando atuam no mundo jurídico, tais agentes estão de alguma forma vinculados ao Poder Público. Com se sabe, o Estado só se faz presente através de pessoas físicas que em seu nome manifestam determinada vontade, e é por isso que essa manifestação volitiva acaba por ser imputada ao próprio Estado. São todas essas pessoas físicas que constituem os agentes públicos.”(CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, p. 447)

                                   Esse também é o conceito legal de agente público, de acordo com o art. 2° da lei 8.429/92 que dispõe:

“Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.”

                                   A análise dos conceitos expostos nos permite concluir que os integrantes do poder judiciário estão contidos dentro da categoria dos agentes públicos.

                                   Essa constatação é bastante importante, pois conforme assevera Celso Antônio Bandeira de Mello, “a noção de agente público não é construção sistemática de caráter meramente acadêmico, mas tem repercussão no ordenamento jurídico positivo”. É que a inclusão dos membros do poder judiciário dentro da categoria dos agentes públicos implica submetê-los a um regime jurídico específico, que muito difere do regime aplicável aos demais sujeitos de direito.

                                   Fazemos essa afirmação porque os agentes públicos exercem função. Esse termo, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello designa “um tipo de situação jurídica em que existe, previamente assinalada por um comando normativo, uma finalidade a cumprir e que deve ser obrigatoriamente atendida por alguém, mas no interesse de outrém, sendo que, este sujeito – o obrigado- para desincumbir-se de tal dever, necessita manejar poderes indispensáveis à satisfação do interesse alheio que está a seu cargo prover. Daí, uma distinção clara entre a função e a faculdade ou o direito que alguém exercita em seu prol. Na função o sujeito exercita um poder, porém o faz em proveito alheio, e o exercita não porque acaso queira ou não queira. Exercita-o porque é um dever”.

                                   Não há, portanto, autonomia da vontade por ocasião do exercício da função. A esse respeito Celso Antônio Bandeira de Mello afirma o seguinte:

“Onde há função, pelo contrário, não há autonomia da vontade, nem a liberdade em que se expressa, nem a autodeterminação da finalidade a ser buscada, nem a procura de interesses próprios, pessoais. Há adscrição a uma finalidade previamente estabelecida e, no caso de função pública, há submissão da vontade ao escopo pré-traçado na Constituição ou na lei e há o dever de bem curar um interesse alheio que, no caso, é o interesse público; vale dizer, da coletividade como um todo e não da entidade governamental em si mesma considerada".

                                   Há uma razão bastante clara para isso é que “o eixo metodológico do Direito Público não gira em torno da idéia de poder, mas gira em torno da idéia de dever”. É que o agente público exerce competência. Carlos Ari Sundfeld assim conceitua competência:

“A expressão competência é usada no Direito com intenção muito definida. Significa-se, com ela, o poder conferido pelo ordenamento, cujo exercício só é lícito se realizado: a) pelo sujeito previsto; b) sobre o território sob sua jurisdição; c) em relação às matérias indicadas na norma; d) no momento adequado; e) à vista da ocorrência dos fatos indicados na norma; e, especialmente f) para atingir a finalidade que levou à outorga do poder. Em outras palavras, a competência é um poder intensamente condicionado".

                                   Celso Antônio Bandeira de Mello, complementa a noção de Carlos Ari Sundfeld acrescentando que as competências são:

“a) de exercício obrigatório para os órgãos e agentes públicos. Vale dizer: exercitá-las não é questão entregue à livre decisão de quem as titularize. Não está em pauta um problema “pessoal” do sujeito, ao qual ele possa dar a solução que mais lhe apraz. Está sotoposto ao dever jurídico de atender à finalidade legal e, pois, de deflagrar os poderes requeridos para tanto sempre que presentes os pressupostos de seu desencadeamento;

b) irrenunciáveis, significando isto que seu titular não pode abrir mão delas enquanto as titularizar;

c) intransferíveis, vale dizer, não podem ser objeto de transação, de tal sorte que descaberia repassá-las a outrem, cabendo, tão-somente, nos casos previstos em lei, delegação de seu exercício, sem que o delegante, portanto, perca, com isto, a possibilidade de retomar-lhes o exercício, retirando-o do delegado;

d) imodificáveis pela vontade do próprio titular, o qual, pois, não pode dilatá-las ou restringi-las, pois sua compostura é a que decorre de lei. A lei pode, contudo, admitir hipóteses de avocação. Esta é a episódica absorção, pelo superior, de parte da competência de um subordinado, ainda assim restrita a determinada matéria e somente nos casos previstos em lei;

e) imprescritíveis, isto é, inocorrendo hipóteses de sua utilização, não importa por quanto tempo, nem por isto deixarão de persistir existindo”.

                                   Verifica-se, assim, que os agentes públicos recebem certos poderes para exercer certos deveres e que são extremamente condicionados no exercício de suas atividades. Os magistrados, como integrantes dessa categoria, no exercício de suas funções, também se submetem às restrições trazidas pela regra que lhes atribui competência. Isso significa dizer que os juizes não têm o direito de julgar, mas sim competência para fazê-lo e somente podem exercitar sua atividade nos estritos limites estabelecidos pela lei.

A função jurisdicional e a independência dos magistrados:

                                   Remonta a Monstequieu a separação das funções estatais em três atividades básicas: a executiva, a legislativa e a judicial. Todas essas três funções têm os seus contornos traçados pelo ordenamento jurídico. É assim que tanto o administrador, quanto o legislador e o magistrado submetem-se às leis. A submissão, no entanto, é maior ou menor de acordo com a atividade exercida.

                                   O administrador tem a submissão extrema, pois a ele somente é dado atuar de acordo com a estrita legalidade. O legislador, por sua vez, possuí um âmbito maior de liberdade, já que a este é dado inovar originariamente o ordenamento jurídico, podendo até mesmo alterar as leis e ficando submetido apenas à Constituição. Ao magistrado é dado o poder de dizer em instância final qual o conteúdo de uma certa lei e de averiguar se esta é constitucional. Isso lhe confere também uma maior liberdade.

                                   Essa liberdade, contudo, é limitada, pois conforme já se afirmou antes os agentes públicos exercem função . É que o Estado, ao assumir para si o exercício dessas funções, assumiu também o ônus de desempenhá-las a contento e de acordo com o interesse da coletividade.

                                   Em relação ao caso específico da função jurisdicional, pode-se dizer que a substituição da justiça privada por uma justiça oficial trouxe para o Estado o dever de definir o direito aplicável ao caso concreto e de aplicá-lo coativamente se necessário. Há um “um poder-dever de prestar a tutela jurisdicional a todo cidadão que tenha uma pretensão resistida por outrem, inclusive por parte de algum agente do próprio Poder Público”.

                                   O modo de garantir o correto exercício desse poder-dever é assegurar a independência dos magistrados no exercício de suas funções. Não há no contexto de um Estado Democrático de Direito quem sustente que a magistratura não necessite de independência para exercer o seu mister. A existência de uma concordância teórica quanto a esse tema não impede um certo distanciamento entre a teoria e a prática. Dalmo de Abreu Dallari aponta vários obstáculos à independência do poder judiciário e elenca como um deles a postura da própria magistratura. Afirma o referido autor o seguinte:

“4º) Entre os inimigos da independência da magistratura estão os próprios magistrados que, por ações e omissões, renunciam à sua independência. Isso tem ocorrido de muitas formas, de modo claro ou sob a invocação de argumentos aparentemente razoáveis, chegando em certos casos a adquirir conotações de verdadeira cumplicidade em iniciativas contra a magistratura.”(Dallari, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, p. 51

                                 Mais adiante, o mesmo autor aponta casos em que a própria magistratura renúncia à sua independência. Afirma o referido autor:

“Há renúncia explícita à independência quando o magistrado pratica atos judiciais acolhendo e aplicando regras legais ou ordens de autoridades manifestante inconstitucionais ou ilegais, alegando que contra a força não há resistência possível e que seria quixotesco proferir decisões que não terão eficácia, porque os poderosos do dia não permitirão. Com essa colaboração dos juízes, as autoridades arbitrárias são poupadas do trabalho de negar cumprimento à decisão de um tribunal e do desgaste que isso, certamente, acarretaria.

Foi desse modo que a magistratura alemã acobertou as violências do nazismo, que possivelmente não teriam tido curso tão fácil se os juízes tivessem resistido às primeiras investidas inconstitucionais contra os opositores do governo e as instituições democráticas. Foi assim também que as magistraturas da América Latina deram apoio às atrocidades e à corrupção praticadas pelas ditaduras militares que tomaram o poder a partir da década de sessenta. Os desaparecidos, os assassinados em cárceres políticos, os torturados, os seqüestrados, os presos arbitrariamente, os que tiveram invadido seu domicílio, os que se exilaram na iminência de serem assassinados ou presos por motivos políticos, os banidos, os expulsos ilegalmente de seus cargos e de suas funções públicas, as vítimas das muitas violências não existiriam ou seriam um número muito menor se a magistratura, por muitos de seus membros, tivesse resistido, como alguns resistiram.

A magistratura brasileira que durante aquele período ajudou agredir a Constituição, dando precedência aos atos institucionais, aos estados de exceção e às razões de segurança nacional, subtendo-se docilmente aos agentes do arbítrio e mantendo com eles convivência amistosa, renunciou à sua independência e foi cúmplice na prática de injustiças. Essa mesma renúncia e essa mesma cumplicidade estão presentes quando, livre da coação militar, a magistratura admite ‘inconstitucionalidades convenientes’, sob pretexto de evitar conflitos sociais ou de ser necessária uma regulamentação para o uso de direitos claramente assegurados pela Constituição ou, ainda, pelo cuidado de não criar dificuldades para o governo. Dobrando-se às conveniências dos economicamente fortes ou dos governantes, a magistratura é, uma vez mais, inimiga de sua independência.” (Dallari, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, p. 52 e 53)

                                   Ocorre que a independência não pode ser renunciada. Fazemos essa afirmação com base nas considerações dantes expostas, de que os magistrados exercem função. Procurando sintetizar os ensinamentos já transcritos sobre o regime jurídico dos agentes públicos e aplicando-os aos magistrados, podemos afirmar o seguinte:

a-) o ordenamento jurídico confere aos membros do poder judiciário o dever-poder de aplicar a lei ao caso concreto solucionando definitivamente certos litígios;

b-) para que possa bem desempenhar esse objetivo, o ordenamento jurídico confere aos magistrados certas prerrogativas, dentre as quais se insere à independência;

c-) essas prerrogativas não podem ser renunciadas, porque os juízes não possuem o direito subjetivo de julgar, mas sim competência para tanto;

d-) o conjunto de deveres e poderes conferidos aos magistrados pela regra de competência é irrenunciável.

                                   Essa é a razão pela qual Dalmo de Abreu Dallari afirma que “a rigor, pode-se afirmar que os juízes têm a obrigação de defender sua independência, pois sem esta a atividade jurisdicional pode, facilmente, ser reduzida a uma farsa, uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade das discriminações das injustiças”.

O princípio do livre convencimento e a independência do poder judiciário

                                   O ordenamento jurídico brasileiro, como forma de assegurar a independência do julgador por ocasião da elaboração de suas decisões, consagrou o princípio do livre convencimento motivado.

 

                                   É assim que o art. 131 do CPC dispôs:

“Art. 131. O juiz apreciará livremente aprova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não legados pelas partes; mas deverá indicar na, sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”

                                   De acordo com o referido dispositivo o juiz tem liberdade ao apreciar a prova, mas deve motivar suas decisões demonstrando as razões do juízo de valor que emite por ocasião da sentença. É que “a liberdade judicial tem limites. Não se pode admitir discricionariedade e/ou arbitrariedade, como no exemplo do juiz de Rebelais, que decidia jogando dados” .  “O juiz só decide com base nos elementos existentes no processo, mas os avalia segundo critérios críticos e racionais (CPC, arts. 131 e 436; CPP, arts. 157 e 182).

Essa liberdade de convicção, porém, não equivale à sua formação arbitrária: o convencimento deve ser motivado (Const., art. 93, inc. IX; CPP, art. 381, inc. 111; CPC, arts. 131, 165 e 458, inc. II), não podendo o juiz desprezar as regras legais porventura existentes (CPC, art. 334, inc. IV; CPP, arts. 158 e 167) e as máximas de experiência (CPC, art. 335)”

                                   Isso significa dizer que ao formar o seu juízo de valor acerca dos fatos que lhe são expostos e do direito aplicável ao caso o juiz possui uma certa liberdade. Essa liberdade, contudo, cessa a partir do momento em que o magistrado firma o seu convencimento. Formado o seu juízo de valor, o magistrado não pode dele abdicar.

 

                                   A existência de jurisprudência contrária ao entendimento de um magistrado, não o autoriza a abdicar de sua convicção. Isso ocorre porque julgar de acordo com o livre convencimento não é um poder do magistrado. É, na realidade, um dever.

                                   Esse dever não deixa de existir em virtude do excesso de causas em trâmite no poder judiciário. Decidir contrariamente à íntima convicção, sob o argumento de que a prolação de decisões contrárias à corrente jurisprudencial dominante apenas acarreta um trabalho desnecessário ao judiciário, tornando a justiça menos célere é trocar o acessório pelo principal. É colocar a celeridade do processo acima do dever de o juiz proferir decisões justas. É colocar um interesse secundário como preponderante em relação ao interesse primário do Estado. É sobrepor o interesse do próprio judiciário ao interesse da sociedade. Essa sobreposição é vedada e isso torna as decisões assim proferidas nulas em virtude de desvio de poder.

 

Desvio de poder nos atos judiciais.

 

                                    O desvio de poder há muito é estudado pelo direito administrativo. Ele consiste num mau uso da competência. O agente público utiliza sua competência para atingir um fim diverso daquele para o qual ela foi atribuída.

É que “cada ato expressivo de uma competência traz insculpido em si um destino correspondente àquela competência. Ora, cada competência só pode ser exercitada para alvejar os fins em vista dos quais foi normativamente instituída; donde, os atos consectários de uma competência não podem ser expedidos senão para atender às finalidades a ela inerentes”.

                                   A doutrina comumente menciona duas modalidades de desvio de poder, que assim são sintetizadas por Celso Antônio Bandeira de Mello:

“a) quando o agente busca uma finalidade alheia ao interesse público. Isto sucede ao pretender usar de seus poderes para prejudicar um inimigo ou para beneficiar a si próprio ou amigo.

b) quando o agente busca uma finalidade – ainda que de interesse público – alheia à “categoria” do ato que utilizou. Deveras, consoante advertiu o preclaro Seabra Fagundes: “Nada importa que a diferente finalidade com que tenha agido seja moralmente lícita. Mesmo moralizada e justa, o ato será inválido por divergir da orientação legal”.

                                   Ambas as modalidades mencionadas podem ser encontradas nos atos judiciais. É que, embora seja construída em torno de conceitos de direito administrativo, a teoria do desvio de poder é plenamente aplicável aos atos praticados pelos demais poderes. Essa teoria aplica-se aos agentes públicos que exorbitem de suas competências, exercitando os poderes que o ordenamento jurídico lhes confere para atingir fins estranhos aos estabelecidos na regra de competência. Esse também é o entendimento de Caio Tácito ao afirmar que “tanto o desvio de poder legislativo, como o desvio de poder jurisdicional, se podem caracterizar na medida em que o legislador ou o juiz destoem, de forma manifesta, do âmbito de seus poderes que, embora de reconhecida amplitude, não são ilimitados e atendem a fins que lhe são próprios e definidos”.

                                   Isso significa dizer que sempre que o fim perseguido em uma decisão judicial for alheio ao interesse público de prestar uma justa solução ao litígio, o ato será viciado.

                                  A hipótese de abdicar do dever de decidir de acordo com o livre convencimento, em virtude da existência de jurisprudência contrária ao entendimento do julgador, enquadra-se na segunda hipótese de desvio de poder mencionada por Celso Antônio Bandeira de Mello. É que o magistrado recebe o dever-poder de decidir os litígios de acordo com a sua consciência e não pode dele abdicar em nome de qualquer outro fim, ainda que esse fim vise a atender em alguma medida o interesse público. A conseqüência prática é que os atos assim praticados serão nulos por desvio de poder.

Conclusão

                                   Demonstra-se, assim que o juiz tem o dever de decidir de acordo com a sua consciência e que, caso não o faça, as decisões por ele proferidas serão nulas.

                                   Poder-se-ia indagar qual a razão para tanto celeuma, eis que para escapar do vício do desvio de poder basta ao magistrado não dar notícia de sua íntima convicção, quando sentenciar em desacordo com ela.

                                   A essa indagação responde-se que o presente trabalho serve no mínimo com um lembrete aos magistrados. Um lembrete feito há muito por Sócrates de que “o juiz não toma assento para dispensar o favor da justiça, mas para julgar; ele não jurou favorecer a quem bem lhe pareça, mas julgar segundo as leis”. Uma lembrança sobre o correto exercício da função de julgar, que de acordo com Carlos Maximiliano exige “são e ardente sentir, grandeza d’alma, tato, simpatia”. Ensinava, ainda o mesmo mestre que a ação inovadora da jurisprudência sempre faz-se sentir nos tribunais inferiores, pois “vêem estes de mais perto os interesses e os desejos dos que recorrem à justiça: uma jurisdição demasiado elevada não é apta a perceber rápida e nitidamente a corrente das realidades sociais. A nova lei vem de cima; as boas jurisprudências fazem-se embaixo”.

                                   Carlos Maximiliano afirmava, ainda que “os julgados constituem bons auxiliares de exegese, quando manuseados criteriosamente, criticados, comparados, examinados à luz dos princípios, com os livros de doutrina, com as exposições sistemáticas do Direito em punho. A jurisprudência, só por si, isolada, não tem valor decisivo, absoluto. Basta lembrar que a formam tanto os arestos brilhantes, como as sentenças de colégios judiciários onde reinam a incompetência e a preguiça".

                                   É por isso que o mesmo autor ensinava “que o julgado, para constituir precedente, vale sobretudo pela motivação respectiva; o argumento científico tem mais peso do que o de autoridade”.

                                 Concluía Carlos Maximiliano fazendo um alerta em relação à subserviência dos magistrados:

“Aos magistrados que acham meritório não ter as suas sentenças reformadas (prova apenas de subserviência intelectual) e seguem, por isso, de modo absoluto e exclusivo, a orientação ministrada pelos acórdãos dos tribunais superiores, Pessina recorda o verso de Horácio: os demasiado cautos e temerosos da procela não se alteiam ao prestígio, nem à glória: arrastam-se pela terra, como serpentes – serpit humi tutus nimium timidusque procelloe”.

                                   É essa a conclusão a que se pretendia chegar. A de que os magistrados devem assumir a responsabilidade pela elaboração de suas sentenças. Se querem ser subservientes, que o sejam e acatem calados as decisões dos tribunais superiores. Se compactuam com as decisões dos tribunais superiores, que reconheçam expressamente essa realidade.

                                   Essa, contudo, não é atitude que esperamos, pois queremos uma magistratura independente e disposta a defender sua independência em nome do ideal maior de justiça. Essa magistratura não dá gritos tímidos de inconformismo no momento em que acata decisões estapafúrdias. Age diferente. Utiliza o dever-poder que o ordenamento jurídico lhe confere e combate esses equívocos com as suas decisões. Essa luta muitas vezes é inglória, mas pior do que perder a batalha é perecer sem nem mesmo ter lutado.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Manoel de oliveira franco sobrinho e o processo administrativo

 

 

Marcelo Harger

                                  

O processo administrativo sempre foi tratado pela doutrina com um certo desdém. Os processualistas civis normalmente afirmavam que perante a Administração Pública somente existia procedimento e à ele comumente se referiam acrescendo o adjetivo “mero”.

                            Essa situação passou a se alterar após a Constituição de 1988, que estendeu ao processo administrativo expressamente as garantias do contraditório e da ampla defesa (art.5°, LV). Inicialmente surgiram alguns trabalhos isolados acerca do tema. Somente após a edição da lei 9.784/99, que disciplinou o processo administrativo perante a União Federal, é que o tema passou a ser objeto de um maior número de estudos.

                            A recente preocupação doutrinária com o tema, contudo, não significa que anteriormente à Constituição de 1988 o processo administrativo carecesse de importância. A preocupação em garantir os direitos dos administrados em face da Administração Pública sempre foi a tônica do Direito Administrativo. Nesse contexto, o processo administrativo sempre surgiu como instrumento destinado à manutenção dessas garantias.

                         A importância já havia sido notada pelo ilustre professor paranaense Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, recentemente falecido, na obra intitulada Introdução ao Direito Processual Administrativo, na qual o autor manifestava o desejo de encontrar uma fórmula que permitisse “ao Estado cumprir seus fins essenciais sem quebra do respeito pelo exercício pleno dos direitos consagrados” . A solução para o dilema, segundo o autor, seria disciplinar por intermédio de lei o processo administrativo.

                            Essa obra, escrita em 1971, até hoje serve de referência para qualquer jurista que pretenda estudar o processo administrativo. Na realidade, até a edição da lei federal 9.784/99 somente existiam no Brasil dois trabalhos tratando do processo administrativo de modo abrangente, sendo um deles o escrito pelo professor paranaenses.

                            A obra, embora marcada pela época em que foi escrita, surpreende pela preocupação demonstrada em responder questões que até hoje afligem os administrativistas. Problemas como o equacionamento entre o dever de eficiência da Administração e a manutenção da igualdade entre os administrados já eram apontados pelo autor:  

“No interesse da administração e dos administrados, cabe investigar como podemos possibilitar organização mais eficiente, na qual o conflito de vontades não desiguale posições que devem ser iguais para equilíbrio da ordem jurídica.

Cabe ainda perquerir como podemos acelerar os processos administrativos e tomada de decisão num contexto jurídico sabidamente multiforme, cheio de resistências e praxes pertubadoras, eivado de vícios e limitações burocráticas.”

                            A subordinação dos agentes administrativos aos princípios de direito também já era postulada pelo professor paranaense:  

“Está evidente que permanecem lacunas no ordenamento administrativo: em tais casos o equacionamento jurídico só pode encontrar solução nos princípios gerais do Direito e não no arbítrio da Administração com a prática de atos discricionários.

Ninguém ignora que o exercício do poder administrativo resulta em efeitos de direito, efeitos jurídicos em razão do ato revelado, não cabendo à Administração atuar livre ou em discordância com princípios gerais do direito, que a inspiram e limitam.”

                            Em obra posterior, intitulada A Prova no Processo Administrativo o autor retoma o tema. Nessa obra, o autor segue a mesma linha da anterior, procurando garantir aos administrados a mais ampla defesa no processo administrativo. Afirma que o direito de “provar o alegado, no sentido amplo da defesa administrativa, resulta virtualmente de um conceito capital de direito, considerando que o poder de mando não é autoritário”.

                            Defende o autor o direito à produção de provas como inerente ao direito de defesa:

“A regra, no processo, que exige a prova, ou a defesa, é regra de validez universal: não incompatibiliza jamais a Administração, porque é regra que envolve toda a noção de procedimento e processo, permitindo o quanto possível, a igualdade das partes litigantes.”

                            Mais adiante, afirma ainda:

“Há elementos que integram a garantia de defesa e que não podem ser simplesmente ignorados, pois a participação do administrado torna inconfundível o litígio, por onde se pressupõe o direito de ser ouvido, justificando assim a natureza da relação processual.

Na fase instrutória, a garantia corresponde a alguns aspectos peculiares ao processo em geral, como o da publicidade em torno do pretendido, o conhecimento do que no processo administrativo se contém e o da oportunidade de apresentar razões contestadoras do ato impugnado”.

 

                           Segundo o autor, o direito à produção de provas no processo administrativo é amplo: 

“Afirmamos, inclusive perante a Administração, sobretudo no processo administrativo, porque no terreno das regras legais, a prova deve corresponder a um valor demonstrativo, tanto em matéria civil como nos demais diversos ramos práticos da ciência do direito.

Está claro que todos os meios de prova resultam indispensáveis e usados podem ser segundo as circunstâncias e a natureza do processo, não obstante a força probatória diferir no civil e no administrativo em razão do elemento de convicção, de avaliação ou de apreciação, de vez que no administrativo os documentos escritos constituem ato material cujo alcance poder-se-á juridicamente determinar”.

                            A análise das provas, por sua vez, é que deverá conduzir o agente público na elaboração de sua decisão:

“Indubitavelmente, no processo administrativo, não se decide apenas por convicção, mas se decide também pela persuasão, como resultado do exame jurídico e material, das provas apresentadas.

Esse o motivo, do porque a prova indiciária não ter acolhida no Direito Administrativo, onde os elementos se apóiam na maioria dos casos, sobre atos que resultam imprecisos na definição da vontade administrativa, tão somente porque se podem suceder habitualmente, mas que sucedendo habitualmente não asseguram direitos.” 

 

As teses defendidas há quase 30 anos pelo mestre paranaense foram incorporadas pelo direito positivo brasileiro com a edição da lei 9.784/99. Atualmente as garantias dos administrados estão positivadas. O trabalho interpretativo da Constituição e do Estado de Direito por ele realizado não foi em vão.

 

                            Essa constatação tenho certeza que servirá de inspiração para todos aqueles estudiosos que lutam pela construção de um direito público mais democrático. Não se pode desanimar, pois teses que hoje ainda encontram certa resistência seguramente serão aceitas no futuro. Pode ser que também demore 30 anos e isso somente tornará a vitória mais gloriosa. O exemplo existe e deve ser seguido.

 

 

Referências Bibliográficas

 

 

Sobrinho, Manoel de Oliveira Franco. A prova no Processo Administrativo. s.l.;s.e.;s.d.

Sobrinho, Manoel de Oliveira Franco. Introdução ao Direito Processual

Administrativo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1971

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Introdução ao Direito Processual Administrativo, p. 01

Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Op. cit., p. 105 a 107

A outra obra mencionada trata-se do escrito de Alberto Pinheiro Xavier editado em 1976 e intitulado Do Procedimento Administrativo.

Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Introdução ao Direito Processual Administrativo, p. 01-02.

Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Introdução ao Direito Processual Administrativo, p. 01-02

Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. A Prova no Processo Administrativo, p. 15

Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. A Prova no Processo Administrativo, p. 28

Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. A Prova no Processo Administrativo, p. 29

Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. A Prova no Processo Administrativo, p. 42

 Idem, pág. 42

O estado de direito brasileiro e a quebra no princípio da tripartição dos poderes

 

Marcelo Harger


O SURGIMENTO DO DIREITO PÚBLICO

 
                        O Direito Público regula a atividade estatal. A evolução desse ramo do Direito confunde-se com a história da limitação do poder do Estado. É somente a partir do momento no qual a autoridade suprema do rei passa a ser contestada e que se concebe uma forma de limitação do poder, que podemos atribuir-lhe uma evolução significativa.
                        As concepções dos iluministas franceses, Rousseau e Montesquieu, tiveram um papel decisivo nessa evolução. O primeiro sustenta a soberania popular que acaba servindo de base à atual idéia de democracia. O segundo parte do pressuposto que todo aquele que detém o poder tende a abusar dele e procura limitar o poder pelo próprio poder. O mecanismo imaginado para conseguir esse intento foi a separação das atividades estatais que deveriam, então, ser exercidas por órgãos distintos: Executivo, Legislativo e Judiciário.
                        A junção dessas duas concepções deu origem ao conceito de Estado de Direito que tem como elemento central a submissão do poder estatal às leis. Esse elemento central, contudo, não significa que os diferentes Estados tenham adotado uma estrutura idêntica de contenção do poder. Cada qual adaptou os ideais iluministas às necessidades existentes e isso ocasionou estruturas de poder diversas.
 
A LIMITAÇÃO DO PODER NA INGLATERRA

                        O primeiro passo na contenção do poder foi dado pela edição da Magna Carta em 1215. Mediante esse diploma legal, pela primeira vez, limitou-se o poder real. Segundo esse documento, nenhum homem livre poderia ter os seus direitos relativos à vida, à liberdade e à propriedade violados e a supressão dos mesmos somente poderia ocorrer segundo a lei da terra (per legem terrae ou law of the land). É verdade que a referida limitação, inicialmente, beneficiava somente os nobres ingleses que viam os seus privilégios de senhores feudais resguardados.                   

Essa semente inicial, contudo, acabaria por germinar e ocasionar frutos jamais imaginados pelos barões ingleses.

                        O que importa ressaltar, nestas breves linhas, é que na Inglaterra sempre se procurou limitar o poder real. O grande arauto dessa luta foi o Parlamento Inglês que, fundamentado nessa filosofia, assumiu um papel de preponderância em relação aos demais poderes estatais, os quais ficam submetidos aos desígnios do Parlamento. Não há um controle sobre a atividade legiferante.
 
A LIMITAÇÃO DO PODER NA FRANÇA

                        A limitação do poder na França seguiu um caminho parecido com o da opção Inglesa. Também nesse país, consagrou-se a supremacia do Parlamento. Clèmerson Merlin Clève demonstra com clareza as razões para isso:
 
Primeiro, o entendimento desenvolvido desde a Revolução de 1.789, segundo o qual a lei constitui expressão da vontade geral, por isso que a soberania da nação reside no Parlamento. Se é assim, se o Parlamento é soberano e se sua obra constitui a expressão da vontade geral, então não há razão para dela se desconfiar. Segundo, os abusos cometidos pelos juízes (Parlements), no período que precedeu a Revolução, foi determinante, de certo modo, da desconfiança dos franceses em relação a eles. Aliás, a desconfiança dos revolucionários em relação aos juízes foi determinante do modo como o Judiciário foi organizado na França. Um poder neutro, mudo, cuja única função é aplicar a lei, sem questioná-la, todavia, jamais.
 
                        Somente com a Constituição de 1958, a França passou a experimentar um verdadeiro controle de constitucionalidade. Esse controle, entretanto, tem caráter político e é exercido preventivamente pelo Conselho Constitucional.


A LIMITAÇÃO DO PODER NOS EUA:

                        A limitação do poder nos EUA seguiu um caminho diverso. Esse país, antes da independência, sujeitava-se ao rei e ao Parlamento inglês. Havia, em conseqüência disso, uma subordinação da colônia aos desígnios da metrópole. Essa subordinação, não raro, implicava a criação de leis que causavam prejuízos aos interesses dos colonos americanos.
                        Diante dessa situação, é natural que houvesse uma grande desconfiança em relação ao Parlamento e que fossem estabelecidos limites ao poder legislativo. A limitação se deu, principalmente, pelo controle de constitucionalidade das leis.
 

A LIMITAÇÃO DO PODER NO BRASIL

                       A Constituição brasileira de 1824 foi fortemente influenciada pelas concepções inglesas e francesas. Não havia, portanto, fiscalização de constitucionalidade. Isso decorria da idéia de supremacia do parlamento e da lei como expressão da vontade geral. Havia, também, o chamado poder moderador, no exercício do qual se atribuía ao Imperador a competência para solucionar conflitos que envolvessem os poderes.
 
                        As instituições políticas brasileiras se alteraram, radicalmente, a partir da Constituição de 1891. A Constituição Republicana sofreu forte influência da doutrina jurídica norte-americana. Essa influência fez-se notar até no nome do Estado brasileiro que passava a chamar-se República dos Estados Unidos do Brasil. A aproximação também se deu pela adoção do Presidencialismo, do Legislativo Bicameral, da Federação e da Judicial Review.
                        Essa aproximação com o sistema norte-americano foi mantida até a Constituição de 1.988.
 
A CONSTITUIÇÃO DE 1.988 E A TRIPARTIÇÃO DOS PODERES

                      A Constituição de 1.988 segue a mesma linha de suas antecessoras. Mantém o controle de constitucionalidade das leis pelo poder Judiciário. Consagra, em seu artigo 2º, a tripartição de poderes ao estabelecer que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A independência e harmonia dos três poderes, todavia, não significa que a Constituição tenha estabelecido um sistema radical de não interferência entre as diferentes funções do Estado. José Afonso da Silva ensina a esse respeito que:
 
De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.
 
                        A existência de equilíbrio, contudo, não significa uma igualdade entre os poderes. No sistema constitucional brasileiro, a exemplo do que ocorre no Argentino, pode ser identificada uma “hierarquia relativa” entre os poderes. Essa hierarquia implica uma preponderância do Judiciário em relação aos demais poderes e do Legislativo em relação ao Executivo.
                        A supremacia do Legislativo sobre o Executivo evidencia-se pelo seguinte: a-) o Poder Executivo submete-se ao princípio da legalidade estrita (art. 37 da C.F. ) ; b-) o Poder Legislativo pode remover o chefe do Poder Executivo mediante juízo político (art. 85 e 86 da C.F.) c-) o Poder Legislativo pode derrubar os vetos impostos pelo Poder Executivo (art. 66 da C.F.)
d-) a existência do chamado veto legislativo (art. 49, V).
                        A preponderância do Poder Judiciário sobre o Legislativo decorre das seguintes constatações: a-) o Poder Judiciário pode declarar inconstitucionais as leis elaboradas pelo Congresso Nacional; b-) o Congresso Nacional não pode rever decisões do Poder Judiciário.
Agustín Gordillo chega à mesma conclusão no direito argentino e afirma a esse respeito que:
 
A Constituição é o que a Corte Suprema decide que é: estando nas mãos do Poder judiciário a interpretação final e indiscutível do sentido e alcance das normas constitucionais, é óbvio que é o Poder Judiciário que tem, no sistema constitucional, primazia sobre o Poder Legislativo.
 
                        Constata-se que, abstratamente, o ordenamento jurídico brasileiro prevê uma estrutura que poderia ser expressa da seguinte maneira: Poder Judiciário > Poder Legislativo > Poder Executivo.
 
A INVERSÃO NA ESTRUTURA CONSTITUCIONAL DE TRIPARTIÇÃO DOS PODERES

                        O sistema de equilíbrio previsto abstratamente pela Constituição não tem funcionado concretamente. Na realidade, tem havido uma inversão bastante perigosa na “hierarquia relativa” estabelecida para os três poderes. É que circunstâncias sociais e políticas acabam por conferir uma preponderância, de fato, do Executivo sobre o Legislativo.

                        Sobre como se processa essa preponderância, trazemos os ensinamentos de Agustín Gordillo que, apesar de fazerem referência ao sistema jurídico argentino, são plenamente aplicáveis ao Brasil:

                                   1) dado que as nomeações dos funcionários públicos são feitas pelo Poder Executivo, e que uma parte lamentavelmente importante do êxito político dos parlamentares é a sua habilidade para obter retribuições e postos para seus afilhados e patrocinadores, resulta que cada parlamentar está em geral solicitando do Executivo a nomeação deste ou daquele amigo ou correligionário da Administração Pública, com o que o legislador se coloca em posição de peticionário mais ou menos submisso ao Executivo de quem solicita o gracioso favor;
                                   2) dado que o Presidente da República costuma ser, formal ou informalmente e salvo poucas exceções, a cabeça visível do partido governante, os deputados e senadores não podem tampouco tomar uma atitude muito firme de controle, com o temor de prejudicar sua carreira política;
                                   3) o Executivo, que conta com meios de publicidade que não estão em igual grau ao alcance dos legisladores, consegue usualmente criar uma imagem mais popular na opinião pública que a dos legisladores individualmente ou do Parlamento em conjunto; essa imagem popular pressiona por sua vez a favor do Executivo e suas obras reais ou presumidas, e contra o Parlamento, destacando sempre mais os erros e deficiências do segundo que os do primeiro;
                                   4) por vezes, algumas cartas ou estatutos lhes dão uma ingerência formal na própria elaboração da lei.
 
                        Sobre a situação do Judiciário, assevera o festejado jurista argentino o seguinte:
 
Ademais, a posição do Poder Judiciário acha-se em geral bastante deteriorada, em primeiro lugar, ao nosso modo de ver com desacerto, porque tem uma certa responsabilidade política na conduta do governo, e sob esta impressão julga muito benevolentemente aos atos do mesmo, entendendo estar assim colaborando com ele. Deste modo, não só deixa de exercer sua função, que não é governar mas julgar a aplicação do Direito aos casos concretos, além de também perder pouco a pouco critério diretor do que deveria ser a sua atribuição específica. O Executivo, longe de reconhecer essa suposta colaboração, passa então a supor que não está senão fazendo o que deve e desse modo nos poucos casos em que o Poder Judiciário se decide finalmente a assentar seu critério jurídico, este é pouco menos que motivo de escândalo público e o Executivo será o primeiro a protestar por uma suposta invasão de suas atribuições, que sem dúvida não é verdadeira. Como se isso fosse pouco o Poder Judiciário também limita seu próprio controle de constitucionalidade somente aos casos concretos e com efeito restritos a estes casos; de que só declarará a inconstitucionalidade quando esta seja ‘clara e manifesta’, como se não fosse seu dever declará-lá quando existe, seja ou não manifesta etc.
 
                        Essas constatações demonstram que o equilíbrio previsto idealmente pela Constituição Federal brasileira foi nitidamente quebrado. Houve uma perigosa inversão na ordem de “hierarquia relativa” estabelecida pela Constituição, que passa a assumir o seguinte formato: Poder Judiciário < Poder Legislativo < Poder Executivo.
                        Poder-se-ia argumentar que esse desequilíbrio seria decorrente de um mal funcionamento dos poderes Legislativo e Judiciário. A resposta a essa indagação é também fornecida por Gordillo e servirá de conclusão ao presente trabalho. Afirma esse jurista sobre o Estado de Direito que:
 
Se constatamos que neste funciona mal um dos poderes que o condiciona, o que devemos fazer é corrigir seus defeitos para que funcione bem e não acentuá-los ainda mais. (…) Se não agirmos assim, levaríamos o desequilíbrio ao seu ponto máximo. Isto seria, obviamente, a institucionalização da ditadura. É nosso dever, pois, tratar de solucionar as crises do Parlamento ou da Justiça, fortalecendo-os para que, sem perda do equilíbrio dos poderes cumpram com a função que o processo de desenvolvimento os exige.
 
BIBLIOGRAFIA
 

BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Granda (1988) Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva.
 
BORNHOLDT, Max Roberto (coord./2001) ICMS/SC: Regulamento anotado. 1ª edição. Curitiba: Juruá.
 
CAMPANHOLE, Hilton Lobo e Adriano (1998) Constituições do Brasil. 12ª edição. São Paulo: Atlas.
 
CARRAZZA, Elizabeth Nazar (coord./1999) Direito Tributário Constitucional. 1ª edição. Curitiba: Max Limonad.
 
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira de. (1989) O Devido Processo Legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. 1ª edição. Rio de Janeiro: Forense.
 
CLÉVE, Clèmerson Merlin (1995) A fiscalização abstrata de constitucionalidade no Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais.
 
DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. (1986) Direito Constitucional Tributário e "Due Process of Law". 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense.
 
GORDILLO, Augustin. (1977) Princípios gerais de Direito Público. trad. Marco Aurélio Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais.
 
________ (1995) Tratado de Derecho Administrativo. Tomo I, 3ª edição. Buenos Aires: Macchi.
 
HARGER, Marcelo (2001) Princípios constitucionais do processo administrativo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Forense.
 
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. (1985) Poder Discricionário. Revista de Direito Público nº 76.
 
SILVA, José Afonso da (2001) Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª edição. São Paulo: Malheiros.
 

 
 
 

 

A ação direta da constitucionalidade

Marcelo Harger

SUMÁRIO 

 

 

APRESENTAÇÃO……………..1

1- INTRODUÇÃO…………….. 2

2- A DISCUSSÃO SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL N° 3 DE 17 DE MARÇO DE 1993

Primeira Corrente Doutrinária: a inconstitucionalidade da medida…………….. 6

Segunda corrente doutrinária: a não-aplicabilidade do instituto…………….. 9

Terceira corrente doutrinária: a constitucionalidade da medida…………….. 10

3- A CONSTITUIÇÃO E AS DIFERENTES ESPÉCIES DE INCONSTITUCIONALIDADE E CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE…………….. 12

Conceito de inconstitucionalidade…………….. 12

Tipos de inconstitucionalidade…………….. 13

Inconstitucionalidade formal e material…………….. 13

Inconstitucionalidade total e parcial…………….. 13

As diferentes espécies de controle da constitucionalidade…………….. 14

4- A AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE…………….. 15

A ação declaratória de constitucionalidade como processo objetivo…………….. 16

Legitimidade Ativa…………….. 17

Legitimação para agir in concreto (demonstração da controvérsia)…………….. 18

Objeto…………….. 18

A ação declaratória de constitucionalidade e as liminares…………….. 19

Procedimento…………….. 20

A decisão e seus efeitos…………….. 21

O efeito vinculante…………….. 22

Críticas ao efeito vinculante…………….. 23

5- CONCLUSÕES…………….. 24

6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………….. 25

 

 

APRESENTAÇÃO 

O presente estudo tem dois objetivos. O primeiro deles é analisar a constitucionalidade da Emenda Constitucional n° 3 de 17/03/93 sob o aspecto material, mais especificamente no que tange à instituição da ação declaratória de constitucionalidade. Esse objetivo é eminentemente teórico, uma vez que o Supremo Tribunal Federal já declarou a constitucionalidade dessa emenda.

O segundo objetivo é traçar o perfil da ação declaratória de constitucionalidade no direito brasileiro. Esse objetivo tem um caráter eminentemente prático pois, independentemente da conclusão teórica a que se chegue na primeira parte do trabalho tem-se que encarar a ação declaratória de constitucionalidade como uma realidade.

 

1- INTRODUÇÃO

 

A evolução do direito, já a algum tempo, levou à superação de certos postulados individualistas. Os conflitos coletivos passaram a ter uma maior incidência no dia a dia do mundo jurídico. Essa mudança no perfil dos conflitos de interesse é fruto da sociedade técnica e de massas em que vive o cidadão contemporâneo.

A vida em sociedade tornou-se por demais complexa e, com isso, surgiu a necessidade da criação de instrumentos processuais novos, mais rápidos e de maior abrangência, que garantam a defesa dos direitos individuais e até mesmo o adequado funcionamento do Estado de Direito.

Ciente dessa realidade, o constituinte de 1988 criou novos mecanismos processuais e conferiu uma maior força a certos institutos antes existentes conferindo uma tutela mais adequada aos interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos.

Some-se a esse quadro os inconvenientes trazidos pela demora e desencontro nas decisões judiciais que acarretam um descrédito na função jurisdicional e, porque não dizer, na Constituição.

Visando atender a esses anseios da sociedade e remediar a situação de demora e desencontro nas decisões judiciais é que o legislador instituiu a ação declaratória de constitucionalidade.

 

 

2- A DISCUSSÃO SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL N° 3 DE 17 DE MARÇO DE 1993
A emenda constitucional n° 3 de 17 de março de 1993, no que tange à instituição da ação declaratória de constitucionalidade estabeleceu as seguintes modificações no texto constitucional:
“art. 102…………………………………………………………………………………………….
I -………………………………………………………………………………………………………
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;
………………………………………………………………………………………………………….
§ 1° – A arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.
§ 2° – As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e so Poder Executivo.”
 
“art 103………………………………………………………………………………………………
………………………………………………………………………………………………………….
§ 4° – A ação declaratória de constitucionalidade poderá ser proposta pelo Presidente da República, pela Mesa do Senado Federal, pela Mesa da Câmara dos Deputados ou pelo Procurador-Geral da República.”
Apesar de o Supremo Tribunal Federal já ter considerado constitucional as modificações mencionadas, a doutrina ainda se mostra dividida a esse respeito. Há basicamente 3 posicionamentos doutrinários diferentes.
A primeira corrente considera ser inconstitucional a medida por afrontar os princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, do acesso ao judiciário e da repartição dos poderes.
A segunda corrente considera que, nos moldes em que foi instituída pela emenda constitucional em questão, a ação declaratória de constitucionalidade é inconstitucional ou não auto-executável. Para essa corrente, o legislador ordinário deverá, ao disciplinar o instituto, suprir as omissões existentes na emenda constitucional n° 3 adequando o referido instrumento ao sistema processual vigente.
Finalmente, há os que defendem a constitucionalidade da emenda, afirmando inexistir qualquer afronta aos princípios constitucionais.
Far-se-á, a seguir, uma análise dos três posicionamentos doutrinários.
 
Primeira Corrente Doutrinária: a inconstitucionalidade da medida
 
A maioria dos doutrinadores brasileiros parece ser contrária à constitucionalidade da emendaem questão. Afirmamque a instituição da ação declaratória de constitucionalidade pela emenda constitucional n° 3 ofende as cláusulas pétreas previstas pelo § 4° do art. 60 da Constituição Federal.
A primeira objeção feita é a de que todo ato normativo é presumidamente constitucional até que seja retirado do mundo jurídico pela declaração de sua inconstitucionalidade. Por isso, não haveria necessidade de declarar que a atividade legislativa do Estado é legítima.
Uma segunda objeção seria a ofensa ao princípio do contraditório (art. 5°, LV da Constituição Federal). Proposta uma ação devem estar presentes, ou, pelo menos, devem poder estar presentes todos os sujeitos que serão influenciados pelo resultado da prestação jurisdicional. É defeso ao juiz decidir qualquer demanda sem ouvir ou citar a parte contra a qual foi proposta.
A terceira objeção relaciona-se diretamente à anterior. Diz respeito à ofensa ao direito de defesa (art. 5°,LV). É necessário que se dê ao réu a oportunidade de apresentar suas razões. Não importa que o réu venha efetivamente a exercer o seu direito. Importa, no entanto, assegurar que a parte possa exercer o seu direito caso assim o queira.
A quarta objeção relaciona-se diretamente às duas imediatamente anteriores e é o desrespeito ao devido processo legal. O contraditório e a ampla defesa são inerentes ao due process of law e, por isso, a inobservância daqueles implica a inexistência desse.
A quinta objeção é a de que a ação declaratória de constitucionalidade consiste em quebra no princípio da separação dos poderes e transforma o Supremo Tribunal Federal em órgão chancelador das leis editadas pelo Poder Legislativo. A sexta e última objeção feita é que, ao conhecer de uma ação declaratória de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal não estará exercendo jurisdição mas legislando, sancionando legislação.Os doutrinadores adeptos dessa corrente refutam a afirmação de Gilmar Ferreira Mendes de que a ação declaratória de constitucionalidade seja simplesmente uma “ação direta de inconstitucionalidade com o sinal trocado” e consideram que a inversão no pedido causa danos consideráveis ao sistema brasileiro de controle da constitucionalidade das leis. Reconhecem que a instituição da ação declaratória de constitucionalidade objetiva trazer segurança jurídica ao propiciar um julgamento mais rápido e uniforme de pleitos de repercussão nacional. Afirmam, contudo, que a segurança jurídica não pode ser sobreposta aos direitos individuais do cidadão garantidos pelo art. 5° da Constituição Federal.

Segunda corrente doutrinária: a não-aplicabilidade do instituto

Há, na doutrina, quem sustente ser a ação declaratória de constitucionalidade, nos moldes em que foi instituída pela emenda constitucional n° 3, não auto-executável. Asseveram esses autores que as críticas feitas no item anterior são procedentes mas que a lei ordinária, ao dispor sobre o tema poderá estabelecer trâmites específicos que supram as deficiências já apontadas.
 
 Terceira conrrente doutrinária a constitucionalidade da medida
A terceira corrente afirma que não há qualquer óbice constitucional à ação declaratória de constitucionalidade. Não se pode transplantar para o controle abstrato da constitucionalidade categorias próprias à atuação jurisdicional concreta. Os tribunais constitucionais, no exercício do controle abstrato de constitucionalidade desempenham uma função autônoma, assemelhada àquela desenvolvida pelo legislativo (jurisdição constitucional objetiva) e, por isso, não se submetem aos princípios aplicáveis à resolução dos conflitos intersubjetivos de interesses.
A inexistência de réu na ação declaratória não macula a legitimidade do instituto. A idéia de que para a atuação jurisdicional do Estado é necessária a existência de dois sujeitos a discutir a respeito de direitos subjetivos constitui uma petição de princípio civilista. Os processos de controle constitucional das normas são processos objetivos e, em decorrência disso, não possuem partes e podem ser instaurados independentemente de um interesse jurídico específico. Destinam-se a eliminar um estado de incerteza sobre a legitimidade de lei ou ato normativo, sendo que os requerentes atuam para que se preserve a segurança jurídica e não em defesa de um interesse próprio.
Além do mais, a afirmação de que a ação declaratória de constitucionalidade ofende o direito de proteção judiciária, o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal carece de lógica. É que a ação declaratória de constitucionalidade é, simplesmente, uma “ação direta de inconstitucionalidade com o sinal trocado”. Por isso, caso aquela ofenda aos referidos princípios, dever-se-á reconhecer que esta também o faz. Essa posição é adotada pelo Supremo Tribunal Federal e, parece ser a mais correta.
 
 

 3- A CONSTITUIÇÃO E AS  DIFERENTES ESPÉCIES DE INCONSTITUCIONALIDADE E CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE

A Constituição pode assumir vários sentidos. No âmbito do presente estudo, interessa concebê-la como a lei fundamental e suprema de um ordenamento jurídico. Essa supremacia implica a existência de mecanismos de controle da constitucionalidade.
Conceito de Inconstitucionalidade
A doutrina costuma definir como inconstitucional o ato normativo cujo conteúdo ou forma se contraponha à Constituição.
Em termos lógicos o problema não se reduz aos casos de leis em relação de contrariedade à Constituição. Essa é apenas a inconstitucionalidade material. A inconstitucionalidade formal resulta de uma inadequação entre o procedimento de elaboração legislativa e o conteúdo da norma constitucional que prescreve o processo legislativo. Por isso, pode-se dizer que a inconstitucionalidade pode ser conceituada como a desconformidade do ato normativo ou do seu processo de elaboraçào com algum preceito constitucional.
 
 

Tipos de inconstitucionalidade

Inconstitucionalidade formal ou material

A inconstitucionalidade formal pode resultar de vício na elaboração ou na competência. O vício na elaboração ocorre quando a lei foi elaborada seguindo procedimento diverso do fixado na Constituição. O vício na competência ocorre quando a lei é elaborada por órgão incompetente. A inconstitucionalidade material refere-se ao conteúdo do ato normativo. Não sendo compatível com a Constituição Federal, o ato normativo será inconstitucional. Nesse sentido, deve-se levar em conta que não há dispositivo constitucional sem normatividade. Mesmo os princípios e normas programáticas possuem uma eficácia mínima que não pode ser esquecida.
 

Inconstitucionalidade total e parcial

A inconstitucionalidade total contamina todo o ato.A parcial incide somente sobre uma parcela do ato normativo.
 
Há, ainda, outras modalidades de inconstitucionalidade. Assim, pode-se citar a inconstitucionalidade por ação e por omissão, a originária e a superveniente, a direta e a indireta, a antecedente e a conseqüente. Essas outras modalidades não serão comentadas por não interessarem diretamente ao objeto do presente estudo. 
 
As diferentes espécies de controle da constitucionalidade
 
O controle da constitucionalidade pode se manifestar de diversas maneiras.
De acordo com o momento da sua realização, o controle pode ser a priori ou a posteriori. Será a priori quando o controle se der antes da vigência do ato normativo. Será a posteriori quando ocorrer após a entrada em vigor do ato normativo.
De acordo com o número de órgãos dotados de competência para realizá-la, a fiscalização da constitucionalidade pode ser difusa ou concentrada. Será difusa quando realizada por uma pluralidade de órgãos. Será concentrada quando monopolizada por um único ou por poucos órgãos competentes.
De acordo com a forma de provocação do órgão jurisdicional o controle pode ser, ainda, por via de exceção ou por via de ação

 

 

 A AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE

Pode parecer estranha a existência de uma ação declaratória de constitucionalidade uma vez que a constitucionalidade da lei é presumida. Todavia, esse instituto adquire peculiar importância em face do nosso sistema de controle da constitucionalidade, onde convivem os modelos concentrado e difuso de fiscalização da constitucionalidade das leis. A finalidade do instituto em questão é a de, na ocorrência de dissenso a respeito da legitimidade de ato normativo federal em face da Constituição, provocar a decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, garantindo, com isso, a economia e a celeridade processuais, a segurança jurídica e a supremacia da Constituição.

A ação declaratória de constitucionalidade como processo objetivo

A ação declaratória de constitucionalidade é meio de controle abstrato da constitucionalidade das leis e, como tal, constitui processo de cunho objetivo.
Esse tipo de processo não se presta à proteção de situações individuais, mas à defesa da ordem jurídica. Os sujeitos constitucionalmente legitimados à deflagrar o processo de fiscalização abstrata da constitucionalidade não defendem um interesse próprio, mas sim um interesse coletivo, mais especificamente, garantir a supremacia da Constituição. Em virtude disso, diz-se que esses processos não possuem partes no sentido comumente atribuído a esta palavra. Na realidade, nesses casos, há sempre um requerente mas não necessariamente um requerido a postular em juízo.
 
A Legitimidade Ativa
O § 4° do art. 103 da Constituição Federal prevê os legitimados ativamente para a propositura da ação:
 
“art. 103……………………………………………………………………………………………..
………………………………………………………………………………………………………….
§ 4° – A ação declaratória de constitucionalidade poderá ser proposta pelo Presidente da República, pela Mesa do Senado Federal, pela Mesa da Câmara dos Deputados ou pelo Procurador-Geral da República.”
 
A proposta inicial era que os mesmos sujeitos fossem legitimados a propor a ação declaratória de constitucionalidade e a ação direta de inconstitucionalidade. Realmente, dada a mesma natureza dessas ações, melhor seria que o Constituinte as disciplinasse da mesma maneira. Essa, no entanto, não foi a opção adotada na emenda n° 3, onde se restringiu a legitimidade ativa ad causam.
Ressalte-se que,conforme a orientação do Supremo Tribunal Federal, a legitimidade ad causam não confere a esses esses sujeitos (exceto o Procurador-Geral da República) capacidade postulatória. O Presidente da República e as Mesas da Câmara e do Senado Federal só poderão postular em juízo se estiverem devidamente representados por advogado regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.
 

Legitimação para agir in concreto (demonstração da controvérsia)

A Emenda Constitucional n° 3/93 não estabeleceu condições especiais para a propositura da ação declaratória de constitucionalidade. Todavia, o Supremo Tribunal Federal não é órgão de consulta. Cabe a ele solucionar controvérsias, ainda que postasem tese. Porisso, deve-se cogitar de uma legitimação para agir in concreto, tal como ocorre no direito alemão.
Para que haja a legitimação in concreto, é necessário que se demonstre a existência de controvérsia a respeito da legitimidade da lei. Esse estado de dúvida quanto à legitimidade da lei pode se dar de várias formas. Todavia, para que se considere legítimo o interesse de agir, deve haver pronunciamentos contraditórios de órgãos jurisdicionais a respeito da legitimidade da norma objeto da ação. A simples controvérsia doutrinária não é elemento suficiente para provocar o estado de incerteza que legitima a propositura da ação. O próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou nesse sentido.
Objeto 
De acordo com a letra “a” do inciso I do art. 102 da Constituição Federal, a ação declaratória de constitucionalidade tem por objeto apenas as leis ou atos normativos federais. Mais uma vez, nota-se uma discrepância injustificada no regime jurídico das duas modalidades de controle abstrato da lei. Melhor seria que a ação declaratória de constitucionalidade também pudesse ser proposta em relação a leis ou atos normativos estaduais.
“Excluídas as leis e atos normativos estaduais, poderão ser objeto da ação declaratória de constitucionalidade todos os atos normativos suscetíveis de impugnação por via de ação direta genérica de inconstitucionalidade” (Clèmerson Merlin Clève, A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, p. 200).
Ressalte-se que, caso o Supremo Tribunal Federal mantenha a sua posição atual, a ação não poderá ter por objeto atos normativos pré-constitucionais, nem atos regulamentares, exceto os definidos como autônomos.
 
A Ação declaratória de constitucionalidade e as Liminares
O texto constitucional não prevê a possibilidade da concessão de liminar em ação declaratória de constitucionalidade. Convém ressaltar, no entanto, que também não há previsão constitucional da concessão de liminares em ação direta de inconstitucionalidade e que, apesar disso, o Supremo Tribunal Federal as tem concedido por entender que o poder de cautela é inerente à própria atividade jurisdicional.
Por isso, de acordo com o magistério de Gilmar Ferreira Mendes, “considerando a natureza e o escopo da ação declaratória de constitucionalidade, a eficácia erga omnes e o efeito vinculante das decisões proferidas nesse processo, parece, igualmente, plausível admitir a concessão de medida cautelar a fim de evitar o agravamento do estado de insegurança ou de incerteza jurídica que se pretende eliminar”.

 

Procedimento

Não há lei ou disposição constitucional a especificar o procedimento aplicável à ação delcaratória de constitucionalidade. Aliás, nem mesmo há lei específica disciplinando a ação direta de inconstitucionalidade. Por isso, para que se confira uma maior efetividade aos processos de controle abstrato da constitucionalidade, é necessário que o legislador supra essa lacuna.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de aplicar para a ação declaratória de constitucionalidade o procedimento que vem sendo adotado na tramitação da ação de inconstitucionalidade, respeitadas as peculiaridades do novo instituto. Por isso, pode-se dizer que o novo instrumento de fiscalização abstrata da constitucionalidade adotará o seguinte procedimento:
a) o requerente deverá apresentar juntamente com a inicial documentação relativa ao processo legislativo da lei objeto da ação para que o Supremo Tribunal Federal possa analisar a constitucionalidade da norma sob um prisma formal;
b) o requerente deverá demonstrar na inicial a existência de controvérsia judicial que possa colocar em risco a presunção de constitucionalidade do ato normativo;
c) o Advogado-Geral da União não atua como curador do texto legal pois já se presume a constitucionalidade do texto;
d) o Procurador-Geral da República, ainda quando for o requerente, deverá atuar no feito na qualidade de custus legis (art. 103 § 1° da C.F.);
e) no julgamento da ação deverá ser observada a disciplina do julgamento da açào direta de inconstitucionalidade, inclusive quanto ao quorum de oito Ministros para a deliberação e quanto à exigência de maioria absoluta (art. 97 da C.F – seis Ministros) para declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do ato normativo.
A desição e seus efeitos
A decisão de mérito pode reconhecer a conformidade ou desconformidade do ato impugnado com a Constituição. A procedência implica a constitucionalidade da lei. A improcedência, desde que pela maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal implica a inconstitucionalidade da norma. Essa decisão, desde que observado o quorum e tomada pela maioria absoluta dos membros da Suprema Corte tem a qualidade de coisa julgada material e formal e produz efeitos erga omnes e ex tunc. Assim como na ação de inconstitucionalidade a decisão declara um estado preexistente.
Aplica-se também aqui, o princípio da parcelaridade dos atos normativos. Por isso, pode ocorrer que se declare uma norma parcialmente constitucional.
 

O efeito vinculante

Em relação aos efeitos da ação declaratória de constitucionalidade, cumpre, ainda, tecer alguns comentários a respeito do efeito vinculante das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Dispõe o § 2° do art. 102 da Constituição Federal:

art 102………………………………………………………………………………………………..
………………………………………………………………………………………………………….
§ 2° – As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e so Poder Executivo.”
Através desse parágrafo o legislador brasileiro, seguindo tendência universal e baseado no direito alemão conferiu efeito vinculante à decisão definitiva de mérito proferida pelo Supremo na ação declaratória de constitucionalidade. Esse instituto objetiva conferir maior eficácia às decisões proferidas pela nossa Corte Constitucional. No Direito brasileiro, todavia, ao contrário do que ocorre no Direito alemão, o efeito vinculante restringe-se apenas à parte dispositiva da sentença, não alcançando os fundamentos determinantes.
A adoção do efeito vinculante acarreta duas consequências principais:
a) a possibilidade de, em caso de descumprimento da decisão por órgãos do Judiciário, provocação do Supremo por via de reclamação;
b) a decisão alcança os atos normativos de igaul conteúdo daquele que deu origem a ela mas que não foi seu objeto, para o fim de, independentemente de nova ação, serem tidos como constitucionais ou inconstitucionais.

Críticas ao efeito vinculante

O efeito vinculante tornou mais completo o sistema brasileiro de controle da constitucionalidade. As críticas que lhe são oponíveis, na realidade, decorrem do fato de o legislador ter ficado aquém do desejado. De fato, o constituinte reformador deveria ter disciplinado do mesmo modo a ação direta de inconstitucionalidade pois, em não agindo desse modo, ocasionou um paradoxo: a lei declarada constitucional ou inconstitucional por decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade produz apenas efeitos erga omnes, enquanto que a lei declarada inconstitucional por decisão proferida em ação declaratória de constitucionalidade produz efeito erga omnes e vinculante. É irracional a discrepância criada entre os efeitos da decisão nesses dois institutos pela emenda n° 03.
Uma última crítica que pode ser efetuada é a de que o constituinte reformador adstringiu o efeito vinculante aos atos do Poder Judiciário e do Poder Executivo. Não há vinculação em relação aos atos do Poder Legislativo. Essa discriminação também é desprovida de fundamento lógico pois caberia ao Constituinte reformador inserir também os atos do Poder Legislativo entre os sujeitos ao efeito vinculante.

 

 

5- CONCLUSÕES

1- A emenda constitucional n° 3 é constitucional. A ação declaratória de constitucionalidade consiste em modalidade de controle abstrato da constitucionalidade que visa a aperfeiçoar o sistema brasileiro de controle. 

2- As críticas feitas ao instituto, pelas razões já apontadas, são improcedentes. A ação declaratória de constitucionalidade nada mais é do que uma “ação direta de inconstitucionalidade com o pólo invertido”.

3- O instituto em questão configura processo objetivo e, como tal pode ser instaurado independentemente da existência de partes e, de um interesse jurídico específico. Há requerente, mas não há requerido.

 

4- A ação declaratória de constitucionalidade constitui importante elemento de uniformiza ção da jurisprudância.

 

 

6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, Almedina, 1993.
 
CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado, 2ª ed., Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1992
 
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no Direito brasileiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995.
 
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Controle da constitucionalidade das leis municipais, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994.
———————————————. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade, 3ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1992.
 
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, São Paulo, Saraiva, 1990
——————————-. A ação declaratória de constitucionalidade: inovação da emenda constitucional 3/93, in Cadernos de Direito Constitucional e ciência Política n° 4.
——————————- e MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coordenação). Ação declaratória de constitucionalidade, 1ª ed., São Paulo, Saraiva, 1995.
 
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo, 6ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990.
 
SLABIB FILHO, Nagib. Ação declaratória de constitucionalidade, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995
 
WALD, Arnoldo. Alguns aspectos da ação declaratória de constitucionalidade, in Revista de Processo n° 76.
 
 

 

 

 

 

Curso de direito administrativo

O Direito Administrativo teve suas feições alteradas nos últimos quinze anos em virtude de diversas emendas constitucionais e da edição de diversas leis.
Essa verdadeira corrente legislativa é o reflexo de idéias colhidas alhures que acabaram por afetar o perfil da Administração Pública brasileira. Expressões como administração gerencial e administração reguladora tornaram-se correntes. A necessidade de eficiência da Administração Pública tornou-se um verdadeiro clamor, que afetou até mesmo a rigidez do princípio da legalidade estrita. De outro lado, procurando equilibrar as mudanças, busca-se implementar a participação da noção de administração consensual ou participativa.
Esse novo panorama trouxe consigo a criação de novos institutos e a remodelação de institutos antigos. Criaram-se agências reguladoras, organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público e contratos de gestão. Instituiu-se uma nova modalidade licitatória, intitulada pregão, que passou a ser largamente utilizada.
A ausência de recursos públicos para o investimento nos serviços essenciais fez com que fossem criadas novas formas de delegação de serviço público. Criaram-se as parcerias público-privadas e os consórcios públicos (parcerias entre entes federativos) objetivando solucionar esse problema.
As novidades apontadas são apenas uma amostra das alterações pelas quais o Direito Administrativo brasileiro vem passando.
É natural que as mudanças encontrem resistências. Não se trata, contudo, de recusar as novidades, simplesmente pelo fato de serem novas. Tampouco se pode aceitá-las pelo mesmo motivo.
Verificar em que medida as inovações são compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro e, de modo especial, com a Constituição Federal é o principal objetivo da presente obra.

Princípios constitucionais e direitos fundamentais

A atualidade e a relevância dos tópicos escolhidos no âmbito da temática já declinada dispensa comentários e insere a obra no contexto do amplo e atualíssimo debate travado em torno do conteúdo, funções e, acima de tudo, da possível eficácia e efetividade dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais em particular.Desde uma abordabem mais ampla, explorando diversas das dimensões da teoria geral dos princípios constitucionais, como é o caso do texto de Paulo Cruz, que abre a coletânea, até o estudo de Alexandre Morais da Rosa, cuidando da vida como critério dos direitos fundamentais, que encerra a obra, a riqueza temática e a seriedade dos trabalhos apenas reforçam a oportunidade da publicação de mais estas contribuições para a literatura jurídica nacional.Sendo eu próprio um permanente entusiasta da causa dos princípios e dos direitos e garantias fundamentais e mesmo considerando a possibilidade de alguma divergência de ponto de vista sobre outro aspecto versado, o que apenas reforça a capacidade da obra em favorecer o debate acadêmico, que pressupõe um saudável, desde que respeitoso e leal, dissenso e um constante e frutífero embate argumentativo, só posso encarar com especial satisfação o crescente número de publicações numa área tão sensível como a dos direitos fundamentais da pessoa humana e as possibilidades efetivas de sua implementação.

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