O estado de direito brasileiro e a quebra no princípio da tripartição dos poderes
Marcelo Harger
O SURGIMENTO DO DIREITO PÚBLICO
O Direito Público regula a atividade estatal. A evolução desse ramo do Direito confunde-se com a história da limitação do poder do Estado. É somente a partir do momento no qual a autoridade suprema do rei passa a ser contestada e que se concebe uma forma de limitação do poder, que podemos atribuir-lhe uma evolução significativa.
As concepções dos iluministas franceses, Rousseau e Montesquieu, tiveram um papel decisivo nessa evolução. O primeiro sustenta a soberania popular que acaba servindo de base à atual idéia de democracia. O segundo parte do pressuposto que todo aquele que detém o poder tende a abusar dele e procura limitar o poder pelo próprio poder. O mecanismo imaginado para conseguir esse intento foi a separação das atividades estatais que deveriam, então, ser exercidas por órgãos distintos: Executivo, Legislativo e Judiciário.
A junção dessas duas concepções deu origem ao conceito de Estado de Direito que tem como elemento central a submissão do poder estatal às leis. Esse elemento central, contudo, não significa que os diferentes Estados tenham adotado uma estrutura idêntica de contenção do poder. Cada qual adaptou os ideais iluministas às necessidades existentes e isso ocasionou estruturas de poder diversas.
A LIMITAÇÃO DO PODER NA INGLATERRA
O primeiro passo na contenção do poder foi dado pela edição da Magna Carta em 1215. Mediante esse diploma legal, pela primeira vez, limitou-se o poder real. Segundo esse documento, nenhum homem livre poderia ter os seus direitos relativos à vida, à liberdade e à propriedade violados e a supressão dos mesmos somente poderia ocorrer segundo a lei da terra (per legem terrae ou law of the land). É verdade que a referida limitação, inicialmente, beneficiava somente os nobres ingleses que viam os seus privilégios de senhores feudais resguardados.
Essa semente inicial, contudo, acabaria por germinar e ocasionar frutos jamais imaginados pelos barões ingleses.
O que importa ressaltar, nestas breves linhas, é que na Inglaterra sempre se procurou limitar o poder real. O grande arauto dessa luta foi o Parlamento Inglês que, fundamentado nessa filosofia, assumiu um papel de preponderância em relação aos demais poderes estatais, os quais ficam submetidos aos desígnios do Parlamento. Não há um controle sobre a atividade legiferante.
A LIMITAÇÃO DO PODER NA FRANÇA
A limitação do poder na França seguiu um caminho parecido com o da opção Inglesa. Também nesse país, consagrou-se a supremacia do Parlamento. Clèmerson Merlin Clève demonstra com clareza as razões para isso:
Primeiro, o entendimento desenvolvido desde a Revolução de 1.789, segundo o qual a lei constitui expressão da vontade geral, por isso que a soberania da nação reside no Parlamento. Se é assim, se o Parlamento é soberano e se sua obra constitui a expressão da vontade geral, então não há razão para dela se desconfiar. Segundo, os abusos cometidos pelos juízes (Parlements), no período que precedeu a Revolução, foi determinante, de certo modo, da desconfiança dos franceses em relação a eles. Aliás, a desconfiança dos revolucionários em relação aos juízes foi determinante do modo como o Judiciário foi organizado na França. Um poder neutro, mudo, cuja única função é aplicar a lei, sem questioná-la, todavia, jamais.
Somente com a Constituição de 1958, a França passou a experimentar um verdadeiro controle de constitucionalidade. Esse controle, entretanto, tem caráter político e é exercido preventivamente pelo Conselho Constitucional.
A LIMITAÇÃO DO PODER NOS EUA:
A limitação do poder nos EUA seguiu um caminho diverso. Esse país, antes da independência, sujeitava-se ao rei e ao Parlamento inglês. Havia, em conseqüência disso, uma subordinação da colônia aos desígnios da metrópole. Essa subordinação, não raro, implicava a criação de leis que causavam prejuízos aos interesses dos colonos americanos.
Diante dessa situação, é natural que houvesse uma grande desconfiança em relação ao Parlamento e que fossem estabelecidos limites ao poder legislativo. A limitação se deu, principalmente, pelo controle de constitucionalidade das leis.
A LIMITAÇÃO DO PODER NO BRASIL
A Constituição brasileira de 1824 foi fortemente influenciada pelas concepções inglesas e francesas. Não havia, portanto, fiscalização de constitucionalidade. Isso decorria da idéia de supremacia do parlamento e da lei como expressão da vontade geral. Havia, também, o chamado poder moderador, no exercício do qual se atribuía ao Imperador a competência para solucionar conflitos que envolvessem os poderes.
As instituições políticas brasileiras se alteraram, radicalmente, a partir da Constituição de 1891. A Constituição Republicana sofreu forte influência da doutrina jurídica norte-americana. Essa influência fez-se notar até no nome do Estado brasileiro que passava a chamar-se República dos Estados Unidos do Brasil. A aproximação também se deu pela adoção do Presidencialismo, do Legislativo Bicameral, da Federação e da Judicial Review.
Essa aproximação com o sistema norte-americano foi mantida até a Constituição de 1.988.
A CONSTITUIÇÃO DE 1.988 E A TRIPARTIÇÃO DOS PODERES
A Constituição de 1.988 segue a mesma linha de suas antecessoras. Mantém o controle de constitucionalidade das leis pelo poder Judiciário. Consagra, em seu artigo 2º, a tripartição de poderes ao estabelecer que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A independência e harmonia dos três poderes, todavia, não significa que a Constituição tenha estabelecido um sistema radical de não interferência entre as diferentes funções do Estado. José Afonso da Silva ensina a esse respeito que:
De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.
A existência de equilíbrio, contudo, não significa uma igualdade entre os poderes. No sistema constitucional brasileiro, a exemplo do que ocorre no Argentino, pode ser identificada uma “hierarquia relativa” entre os poderes. Essa hierarquia implica uma preponderância do Judiciário em relação aos demais poderes e do Legislativo em relação ao Executivo.
A supremacia do Legislativo sobre o Executivo evidencia-se pelo seguinte: a-) o Poder Executivo submete-se ao princípio da legalidade estrita (art. 37 da C.F. ) ; b-) o Poder Legislativo pode remover o chefe do Poder Executivo mediante juízo político (art. 85 e 86 da C.F.) c-) o Poder Legislativo pode derrubar os vetos impostos pelo Poder Executivo (art. 66 da C.F.)
d-) a existência do chamado veto legislativo (art. 49, V).
A preponderância do Poder Judiciário sobre o Legislativo decorre das seguintes constatações: a-) o Poder Judiciário pode declarar inconstitucionais as leis elaboradas pelo Congresso Nacional; b-) o Congresso Nacional não pode rever decisões do Poder Judiciário.
Agustín Gordillo chega à mesma conclusão no direito argentino e afirma a esse respeito que:
A Constituição é o que a Corte Suprema decide que é: estando nas mãos do Poder judiciário a interpretação final e indiscutível do sentido e alcance das normas constitucionais, é óbvio que é o Poder Judiciário que tem, no sistema constitucional, primazia sobre o Poder Legislativo.
Constata-se que, abstratamente, o ordenamento jurídico brasileiro prevê uma estrutura que poderia ser expressa da seguinte maneira: Poder Judiciário > Poder Legislativo > Poder Executivo.
A INVERSÃO NA ESTRUTURA CONSTITUCIONAL DE TRIPARTIÇÃO DOS PODERES
O sistema de equilíbrio previsto abstratamente pela Constituição não tem funcionado concretamente. Na realidade, tem havido uma inversão bastante perigosa na “hierarquia relativa” estabelecida para os três poderes. É que circunstâncias sociais e políticas acabam por conferir uma preponderância, de fato, do Executivo sobre o Legislativo.
Sobre como se processa essa preponderância, trazemos os ensinamentos de Agustín Gordillo que, apesar de fazerem referência ao sistema jurídico argentino, são plenamente aplicáveis ao Brasil:
1) dado que as nomeações dos funcionários públicos são feitas pelo Poder Executivo, e que uma parte lamentavelmente importante do êxito político dos parlamentares é a sua habilidade para obter retribuições e postos para seus afilhados e patrocinadores, resulta que cada parlamentar está em geral solicitando do Executivo a nomeação deste ou daquele amigo ou correligionário da Administração Pública, com o que o legislador se coloca em posição de peticionário mais ou menos submisso ao Executivo de quem solicita o gracioso favor;
2) dado que o Presidente da República costuma ser, formal ou informalmente e salvo poucas exceções, a cabeça visível do partido governante, os deputados e senadores não podem tampouco tomar uma atitude muito firme de controle, com o temor de prejudicar sua carreira política;
3) o Executivo, que conta com meios de publicidade que não estão em igual grau ao alcance dos legisladores, consegue usualmente criar uma imagem mais popular na opinião pública que a dos legisladores individualmente ou do Parlamento em conjunto; essa imagem popular pressiona por sua vez a favor do Executivo e suas obras reais ou presumidas, e contra o Parlamento, destacando sempre mais os erros e deficiências do segundo que os do primeiro;
4) por vezes, algumas cartas ou estatutos lhes dão uma ingerência formal na própria elaboração da lei.
Sobre a situação do Judiciário, assevera o festejado jurista argentino o seguinte:
Ademais, a posição do Poder Judiciário acha-se em geral bastante deteriorada, em primeiro lugar, ao nosso modo de ver com desacerto, porque tem uma certa responsabilidade política na conduta do governo, e sob esta impressão julga muito benevolentemente aos atos do mesmo, entendendo estar assim colaborando com ele. Deste modo, não só deixa de exercer sua função, que não é governar mas julgar a aplicação do Direito aos casos concretos, além de também perder pouco a pouco critério diretor do que deveria ser a sua atribuição específica. O Executivo, longe de reconhecer essa suposta colaboração, passa então a supor que não está senão fazendo o que deve e desse modo nos poucos casos em que o Poder Judiciário se decide finalmente a assentar seu critério jurídico, este é pouco menos que motivo de escândalo público e o Executivo será o primeiro a protestar por uma suposta invasão de suas atribuições, que sem dúvida não é verdadeira. Como se isso fosse pouco o Poder Judiciário também limita seu próprio controle de constitucionalidade somente aos casos concretos e com efeito restritos a estes casos; de que só declarará a inconstitucionalidade quando esta seja ‘clara e manifesta’, como se não fosse seu dever declará-lá quando existe, seja ou não manifesta etc.
Essas constatações demonstram que o equilíbrio previsto idealmente pela Constituição Federal brasileira foi nitidamente quebrado. Houve uma perigosa inversão na ordem de “hierarquia relativa” estabelecida pela Constituição, que passa a assumir o seguinte formato: Poder Judiciário < Poder Legislativo < Poder Executivo.
Poder-se-ia argumentar que esse desequilíbrio seria decorrente de um mal funcionamento dos poderes Legislativo e Judiciário. A resposta a essa indagação é também fornecida por Gordillo e servirá de conclusão ao presente trabalho. Afirma esse jurista sobre o Estado de Direito que:
Se constatamos que neste funciona mal um dos poderes que o condiciona, o que devemos fazer é corrigir seus defeitos para que funcione bem e não acentuá-los ainda mais. (…) Se não agirmos assim, levaríamos o desequilíbrio ao seu ponto máximo. Isto seria, obviamente, a institucionalização da ditadura. É nosso dever, pois, tratar de solucionar as crises do Parlamento ou da Justiça, fortalecendo-os para que, sem perda do equilíbrio dos poderes cumpram com a função que o processo de desenvolvimento os exige.
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