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Reflexões iniciais sobre o princípio da eficiência

 Marcelo Harger

 

Introdução: 

                        A emenda constitucional nº 19 trouxe diversas inovações ao direito administrativo brasileiro. A mais importante delas talvez tenha sido a inclusão do princípio da eficiência no caput do art. 37 de nossa Constituição. Fazemos essa afirmação porque esse artigo norteia toda a atividade administrativa do Estado brasileiro, seja ela da União, dos Estados, dos Municípios e demais entidades da administração pública direta e indireta.

                        Apesar do tempo decorrido , os estudos a respeito do tema ainda são escassos. É que, na realidade, os princípios jurídicos do direito administrativo tem sido pouco estudados. A doutrina, apesar da importância fundamental, não tem se aprofundado no tema.

                        Esse fato é alarmante, especialmente, porque a correta compreensão do sistema jurídico de um país depende diretamente do conhecimento dos princípios que o norteiam. É que os princípios são idéias  centrais cuja compreensão é necessária para a correta interpretação das normas jurídicas. Eles possuem um caráter aglutinador que transforma as normas esparsas em um todo harmônico. Verifica-se, assim, num primeiro momento que os princípios servem para auxiliar o cientista do direito no conhecimento de seu objeto de estudo.

                        Essa, contudo, não é a única função dos princípios. É verdade que o direito, como qualquer ciência, depende da enunciação de seus princípios básicos, mas o jurista via além disto. É que para o estudioso do direito os princípios têm um caráter eminentemente prático, pois constituem verdadeiras normas jurídicas possuem um caráter normativo que se irradia por todo o sistema e que se apresenta sob um duplo aspecto. O primeiro é um aspecto positivo que decorre da influência que exercem na elaboração de normas e nas atividades de interpretação e integração do direito. O segundo é um aspecto negativo que se caracteriza pela rejeição dos valores que os contrariem.

                        Compreende-se, assim, a razão pela qual constantemente se afirma que violar um princípio é mais sério do que violar uma simples norma. É que a afronta a um princípio faz ruir todo o sistema causando a desestruturação de todo o ordenamento jurídico.

                        Essas constatações são ainda mais relevantes se nos ativermos ao caso do direito público e, em especial, do direito administrativo. É que esse ramo do direito possui uma elaboração bastante recente e ainda não está codificado. As normas encontram-se dispersas e são produzidas sem método. Não é rara, também, a existência de lacunas legais. Os princípios aparecem, então, como meio de solucionar esses problemas.

                        É dentro desse prisma que procuraremos analisar o princípio da eficiência.

O Estado de Direito  e a Limitação do Poder Executivo:

                        A Constituição Federal, em seu artigo 1º dispõe que o estado brasileiro é um Estado Democrático de Direito e que “todo o poder emana do povo”. Dispõe, ainda, em seu artigo 2º que “são poderes da união, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

                        A leitura desses artigos demonstra que o constituinte brasileiro, foi influenciado pelas concepções de Rousseau e Montesquieu e, em decorrência disso erigiu um Estado que, no dizer de Carlos Ari Sundfeld é baseado nos seguintes elementos: “a-) criado e regulado por uma Constituição; b-) os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres; c-) o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo, em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos, que controlam uns aos outros; d-) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observada pelos demais poderes; e-) os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive políticos, podem opô-los ao próprio Estado”. Esse fato tem bastante relevância pois a concepção de Estado influencia sobremaneira o direito administrativo e, porque não dizer, o direito público em geral.

                         É que, inicialmente, havia apenas o soberano que detinha em suas mãos o poder de administrar, ditar as leis e julgar. O “príncipe”, como senhor do interesse público, não estava subordinado a qualquer norma. Imperava o arbítrio, entendido como a ausência de limitações legais . Através de uma lenta evolução, essas atividades foram sendo  atribuídas a órgãos distintos, sempre com o objetivo de limitar o poder. Essa evolução culmina com o advento do Estado de Direito. A partir desse momento, o Estado passou a ter sua atividade limitada pelas leis, que são criadas pelos representantes do povo. Essa foi a grande novidade do novo modelo. Agora, não somente os indivíduos devem respeito à lei, mas a própria administração pública passa a ter a sua atividade inteiramente vinculada aos ditames legais.

                        O novo modelo tem suas raízes no pensamento de Rousseau e Montesquieu. O primeiro sustenta a soberania popular, que retira do princípe o poder divino e dá base à atual idéia de democracia. O segundo, partindo do pressuposto de que todo aquele que detém o poder tende a abusar dele, estipula um mecanismo de freios e contrapesos, para evitar os abusos, pelo qual aquele que faz as leis não deve julgá-las nem executá-las; aquele que executa as leis não deve julgá-las nem fazê-las; e aquele que julga as leis não deve executá-las nem fazê-las. É assim que surgem as noções de poder executivo (aquele que executa as leis), legislativo (aquele que elabora as leis) e judiciário (aquele que julga).

                        Essa nova concepção da organização estatal vem a trazer uma contribuição bastante importante para o Direito Administrativo que é o conceito de Administração legal. A partir desse momento, a atividade administrativa passa a dever obediência à lei e aos interesses dos indivíduos que, “com o seu consentimento” dão origem ao poder estatal.

A Função Administrativa

                        A relação da Administração com a lei é bastante diferente daquela entre a lei e o particular. É que enquanto o particular pode fazer tudo aquilo que a lei não proibe, a Administração somente pode fazer aquilo que a lei permite. De um lado, uma relação de não contradição que tem como pressuposto a autonomia da vontade. De outro, uma relação de subsunção que é associada à idéia de função pois os agentes públicos não podem deixar de satisfazer os interesses cuja tutela lhes foi conferida pela lei.

                        É em torno dessa idéia de função que vai se desenvolver todo o Direito Público e, em especial, o Direito Administrativo. Mas o que é uma função para o Direito? Função é uma situação jurídica, criada em lei, onde se estabelece para alguém o dever de atingir uma certa finalidade no interesse de outrem. Para o fiel cumprimento dessa finalidade, o responsável necessita utilizar certos poderes indispensáveis à realização da tarefa que lhe foi conferida.

                        Verifica-se que a função tem um caráter meramente instrumental. “Atinge esse fim fundado nesta norma” no dizer de Queiró. Há uma finalidade a ser cumprida que deve ser atingida de acordo com o disposto na norma que estabelece  a função. Para que essa finalidade possa ser atingida são atribuídos ao encarregado da função certos poderes que somente podem ser utilizados na direção estabelecida pela norma. Há, portanto, um dever-poder no exercício da função.

                        No exercício desses poderes, a Administração acaba por se encontrar em uma situação sui generis pois, ao mesmo tempo em que assume uma posição de superioridade diante dos administrados, como órgão responsável pela aplicação das leis para o atingimento das necessidades coletivas, fica subordinada à lei e ao controle judicial de seus atos.

                        Isso ocorre porque onde há função não lugar para autonomia da vontade nem para a busca de interesses próprios ou pessoais. Há, isto sim, a necessidade de se atender uma certa finalidade prevista em lei.

                        Mas não é só o administrador que exerce função. O legislador e o juiz também atuam funcionalmente. É que os órgãos estatais não são titulares do poder que lhes foi conferido pela Constituição. Por isso, no exercício do poder não há qualquer direito subjetivo dos governantes. Há, isto sim, o dever de atuar conforme a competência que lhes foi atribuída.

 

O Legislador e a busca da solução que melhor atende aos interesses da coletividade

 

                        Já se estabeleceu que os administradores, juízes e legisladores exercem função. Estabeleceu-se, também que no Estado de Direito há o primado da legalidade. Esse fato acarreta uma certa supremacia do legislador em relação aos demais poderes. É que, desde que respeitada a Constituição, o legislador é quem estabelece as condutas a serem tomadas pelos demais poderes que limitar-se-iam a aplicar a lei. É por isso que se diz que a liberdade do legislador é maior que a existente em relação aos demais poderes. Respeitadas as diretrizes constitucionais, cabe ao legislador traçar o rumo a ser tomado pelo Estado com o objetivo de tornar efetivos os valores consagrados pela Constituição. Sob esse prisma, caberá ao executivo dar efetividade ao programa do legislador e ao judiciário controlar a conformidade dos atos do legislativo e do executivo com a Constituição e a dos atos desse último com a legalidade.

                        Na busca pela efetivação desses valores o legislador deve sempre procurar a melhor solução na gestão dos interesses da sociedade. É que, conforme já se afirmou, o legislador atua como representante do povo e não se pode conceber que, podendo optar pela melhor, ele escolha a pior solução. Para o atingimento desse objetivo o legislador pode atuar de duas maneiras. Na primeira estabelece em lei exatamente qual conduta deverá ser adotada pelo poder executivo diante de uma dada situação concreta. Há, aqui, uma pré-escolha da solução mais adequada para um caso concreto. Diz-se nesse caso que a atividade da administração pública será vinculada.

                        Na segunda, o legislador não estabelece de modo completo qual é a atuação que melhor atenderá ao interesse público. Age o legislador dessa maneira porque em certos casos não se pode saber previamente qual solução, dentre as várias disponíveis, atenderá o interesse público. Deixa, então, ao administrador a possibilidade de escolher diante do caso concreto qual a solução que melhor assegura o atendimento dos interesses coletivos. Diz-se, nesse caso, que há discricionariedade.

                        Ocorre que a existência de discricionariedade no plano da norma não significa que, diante do caso concreto, o administrador possa optar pela solução que melhor lhe aprouver, segundo critérios unicamente subjetivos. É que, como já se disse, a norma sempre busca a solução ótima e não pode o administrador utilizando uma prerrogativa pretensamente discricionária, diante da existência de duas soluções para um caso concreto, optar pela pior delas. A discrição administrativa não significa liberdade para o administrador eleger qualquer solução ao acaso diante do caso concreto. A lei não considera que todas as soluções sejam igualmente justas para todos os casos. Considera, isto sim, que algumas soluções são justas para uma espécie de casos e outras para as demais espécies. Diante da grande quantidade de situações possíveis, a lei deixa ao administrador a prerrogativa de verificar diante do caso concreto qual a melhor solução a ser aplicada. Esclarecendo melhor, a existência de discricionariedade no plano da norma não implica discrição perante o caso concreto. Os fatos servem de parâmetros a balizar a previsão abstrata prevista pela norma e podem chegar até a eliminar a discricionariedade diante do caso concreto.

O princípio da eficiência

                        Demonstrou-se no item anterior que o administrador, mesmo nos casos nos quais a norma lhe confira discricionariedade, deve sempre procurar a solução que melhor atenda ao interesse público do qual é curador. Esse entendimento nada mais significa do que a consagração do princípio da eficiência em nosso ordenamento jurídico. Ele não é inédito no direito brasileiro. Hely Lopes Meirelles já defendia, há muito tempo, sua existência mesmo sem estar previsto expressamente em nossa Constituição. É que ele se relaciona com diversos outros princípios constitucionais aplicáveis às atividades da administração pública. Conforme já se evidenciou, é uma conseqüência lógica do princípio do Estado de Direito. É, também, uma faceta do princípio da legalidade e confunde-se com os princípios da moralidade e da razoabilidade da administração.

                        Apesar disso, possui conteúdo próprio. Traduz o dever de administrar, não só de modo razoável e conforme a moral, mas utilizando as melhores opções disponíveis. É o dever de alcançar a solução que seja ótima ao atendimento das finalidades públicas. Não basta que seja uma solução possível. Deve, isto sim, ser a melhor solução. Há um dever jurídico de boa administração para o atendimento da finalidade legal.

                        “É de se presumir que, não sendo a lei um ato meramente aleatório, só pode pretender, tanto nos casos de vinculação, quanto nos casos de discrição, que a conduta do administrador atenda excelentemente, à perfeição, a finalidade que a animou. Em outras palavras, a lei só quer aquele específico ato que venha a calhar à fiveleta para o atendimento do interesse público. Tanto faz que se trate de vinculação, quando de comando da norma sempre propõe isto e se uma norma é uma imposição, o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei”.

 O princípio da eficiência e os atos discricionários:

                        Questão interessante a ser tratada a respeito do princípio da eficiência é a sua aplicação aos atos vinculados e discricionários. Os atos vinculados normalmente não são afetados pelo princípio da eficiência. É que, nesses casos, a lei já determina qual a única solução possível para o atingimento do interesse público. A solução ótima, nesses casos, já está prevista em lei.

                         Nos atos discricionários, pelo contrário, caberá ao administrador a escolha da solução que irá atender a finalidade pública prevista pela norma. Nesses casos o princípio da eficiência apresenta a sua relevância. É que o administrador não pode optar de maneira aleatória entre as várias opções disponíveis. O caso concreto poderá demonstrar que uma dentre as várias soluções possíveis é a melhor. Nesses casos não haverá qualquer margem de escolha. O princípio da eficiência impõe a adoção da melhor opção. O desrespeito a essa regra implica a invalidade do ato. Essa é a grande utilidade do princípio da eficiência. Serve de baliza para a atuação discricionária.

                         Não se pretende, com a adoção desse posicionamento, eliminar por completo a discricionariedade administrativa. Procura-se, isto sim, impor certos limites a um instituto que tem sido considerado um “terreno melindroso”, ou até, como Zorn, uma verdadeira quaestio diabolica. Pretende-se, isto sim, estender o campo de controle do poder judiciário sobre os atos do poder público. Questões que antigamente eram consideradas insindicáveis, por dizerem respeito ao mérito do ato administrativo, agora podem ser analisadas pelo poder judiciário. Não há mais como utilizar o mérito do ato administrativo de escudo protetor nos casos nos quais seja possível, diante da realidade fática, determinar qual a melhor solução a ser utilizada.

                         Reduz-se, dessa maneira, em grande parte o poder discricionário da administração sem eliminá-lo por completo. É que há um limite que foi bem observado por Bernatzik. É “um limite além do qual nunca terceiros podem verificar a exactidão ou não exactidão da conclusão atingida. Pode dar-se que terceiros sejam de outra opinião, mas não podem pretender que só eles estejam na verdade, e que os outros tenham uma opinião falsa”. Somente nesses casos é que se pode falar em discricionariedade e na insindicabilidade do ato administrativo. Nesses casos, o judiciário não pode atuar sob pena de substituir a discricionariedade do administrador pela discricionariedade do juiz.

 Conclusões:

                                    Diante do exposto, chega-se às seguintes conclusões:

 1-) o princípio da eficiência possui conteúdo próprio e traduz o dever de administrar utilizando as melhores opções disponíveis;

 2-) a emenda constitucional nº 19 ao introduzir o princípio da eficiência no caput do art. 37 de nossa Constituição, apenas tornou expresso um dever que o administrador público já possuía implicitamente;

 3-) o princípio da eficiência limita a atuação discricionária dos agentes públicos;

 4-) o princípio da eficiência possibilita a análise pelo judiciário de questões que, conforme a jurisprudência e a doutrina tradicionais, anteriormente lhe eram vedadas por referirem-se exclusivamente ao mérito do ato administrativo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo

     Administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998. 358 p.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4ª ed. São Paulo: Malheiros editores, 1994. 341 p.

HARGER, Marcelo. A discricionariedade e os conceitos jurídicos indeterminados. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 756: 11-36, 1998.

MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo: Revista dos

      Tribunais, 1996. 456 p.

_______________. O direito administrativo em evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. 245 p.

_______________. Poder discricionário da Administração. Revista dos Tribunais nº 610, 38-45

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1995.  731 p.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 8ª ed.

     rev. amp. São Paulo: Malheiros, 1996. 624 p.

____________________________ Poder Discricionário. Revista de direito público nº 76, 99 a 109.

____________________________. Discricionariedade e controle judicial. São Paulo, Malheiros Editores, 1992. 110 p.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. Atlas, São Paulo, 1991. 180 p.

QUEIRÓ,Afonso Rodrigues. Reflexões sobre a Teoria do Desvio de Poder em Direito Administrativo. Coimbra: Coimbra Editora, 1940.

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 3ª ed. São Paulo:

     Malheiros, 1997. 176 p.

 

 

O simples e o princípio da isonomia

Marcelo Harger

 

 

 

A lei nº 9.317/96 criou um sistema simplificado de tributação, conhecido como “Simples”. Esse sistema veio dar aplicação ao art. 179 da Constituição Federal que dispõe:

Art. 179 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.

De fato, o novo sistema traz grandes benefícios às microempresas e empresas de pequeno porte. Estas empresas estão definidas no art. 2º da lei, alterado pela lei nº 9.732/98 que dispõe:

Art. 2° – Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:

I.                     microempresa, a pessoa jurídica que tenha auferido, no ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais);

II.                   empresa de pequeno porte, a pessoa jurídica que tenha auferido, no ano-calendário, receita bruta superior a R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais) e igual ou inferior a R$ 720.000,00 (setecentos e vinte mil reais). 

Ocorre que, surpreendentemente, o inciso XIII do art. 9º da lei em questão excluiu diversas empresas do sistema por ela instituído. Dispõe o mencionado artigo: 

Art. 9º – Não poderá optar pelo simples a pessoa jurídica:

…………………………………………………………………………………..

XIII- que preste serviços profissionais de corretor, representante comercial, despachante, ator, empresário, diretor ou produtor de espetáculos, cantor, músico, dançarino, médico, dentista, enfermeiro, veterinário, engenheiro, arquiteto, físico, químico, economista, contador, auditor, consultor, estatístico, administrador, programador, analista de sistema, advogado, psicólogo, professor, jornalista, publicitário, fisicultor, ou assemelhados, e de qualquer outra profissão cujo exercício dependa de habilitação profissional legalmente exigida;

…………………………………………………………………………………

Verifica-se que o inciso XIII do art. 9º, já transcrito, impediu que a sistemática do simples fosse adotada pelas pessoas por ele elencadas. Ao assim dispor, ficou eivado de inconstitucionalidade flagrante.

Essa inconstitucionalidade decorre, basicamente, de duas razões. A primeira é o desrespeito ao art. 179 da Constituição. A segunda consiste em uma afronta ao princípio da isonomia.

A simples leitura do art. 179, já transcrito, nos faz perceber que o constituinte pretendeu beneficiar todas as microempresas e empresas de pequeno porte. Não há restrição a área ou espécie de atividade. Qualquer restrição a esse respeito somente poder-se-ia realizar em virtude da receita das empresas. Essa interpretação é a que mais se coaduna com o espírito da norma constitucional.

Em benefício dessa tese, cabe lembrar que a Constituição deve ser interpretada como um sistema e que o § 1º do art. 47 do ADCT da nossa Carta Magna distingue as microempresas e as empresas de pequeno porte das demais, em virtude do faturamento.

Verifica-se, portanto, a primeira ofensa constitucional.

Ofensa ainda maior é a perpetrada pelo referido dispositivo legal contra a isonomia. Essa ofensa, contudo, não foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o pedido de liminar na ADIN nº 1643-1. Extrai-se do voto que o indeferimento do pedido de liminar fundou-se em duas razões principais. A primeira consiste no fato de que as empresas compostas por profissionais liberais não sofreriam concorrência de grandes empresas e isso não justificaria um tratamento tributário diferenciado, conforme se observa do seguinte trecho:

Com efeito, especificamente quanto ao inciso XIII do citado art. 9º, não resta dúvida que as sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada não sofrem impacto do domínio de mercado pelas grandes empresas; não se encontram, de modo substancial, inseridas no contexto da economia informal; em razão do preparo científico, técnico e profissional de seus sócios estão em condições de disputar o mercado de trabalho, sem assistência do Estado; não constituiriam, em satisfatória escala, fonte de geração de empregos se lhes fosse permitido optar pelo "Sistema Simples". (…) Consequentemente, a exclusão do "Simples", da abrangência dessas sociedades civis, não caracteriza discriminação arbitrária porque obedece critérios razoáveis adotados com o propósito de compatibilizá-los com o enunciado constitucional.

O segundo argumento consiste no fato de que o judiciário somente pode atuar como legislador negativo e nunca positivo, conforme se depreende do seguinte trecho:

Vê-se que a pretensão da Requerente de obter, pela via judicial, a extensão das isenções extrafiscais e da redução de alguns tributos esbarra nos precedentes do Supremo Tribunal Federal como, dentre outros, o assim ementado:

(…)

3 – Não pode esta Corte alterar o sentido inequívoco da norma por via de declaração de inconstitucionalidade de parte de dispositivo de lei. A Corte Constitucional só pode atuar como legislador negativo, não porém, como legislador positivo.

(…)

(RE nº 212.153 – DJ de 26/09/97).

Em que pese a sapiência de nossos ministros do Supremo Tribunal Federal, julgamos que a decisão mencionada merece reparos. A melhor solução parece ser a que considera que o dispositivo em questão deve ser declarado inconstitucional.

O argumento de que os profissionais mencionados no inciso XIII do art. 9º da lei nº 9.317/96 não sofreriam concorrência de grandes empresas é equivocado. Basta verificar o poderio econômico das grandes empreiteiras e aquele de pequenas empresas compostas por engenheiros e arquitetos em início de carreira, para comprovar a diferença econômica que dá origem ao tratamento diferenciado. A mesma diferença ocorre: em relação a grandes clínicas e hospitais e a médicos e dentistas; em relação às consultorias internacionais e a profissionais da contabilidade, auditores e economistas;

Em cada uma das profissões elencadas no inciso XIII do art. 9º da lei nº 9.317/96, a mesma situação pode ser verificada. Até mesmo em relação à classe dos advogados. É notória a existência de grandes bancas de advocacia, em especial nas capitais, algumas compostas por mais de 100 advogados e com sedes no exterior. Não há como comparar essas grandes bancas com aquelas formadas por advogados em início de carreira, que lutam para conseguir o primeiro cliente e que dependem dos valores repassados pelo Estado, pela prestação de assistência judiciária gratuita, para sobreviver.

Relevante, ainda, é o fato de que as empresas que foram excluídas do “Simples”, pelo inciso XIII do art. 9º da lei nº 9.732/98, pertencem ao setor de serviços. Nos últimos anos, esse setor tem apresentado, conforme é de conhecimento geral, um crescimento significativo no número de postos de trabalho. A mão-de-obra demitida pela indústria tem sido aproveitada em atividades de prestação de serviços.

A restrição imposta pelo inciso XII do art. 9º da lei nº 9.732/98 acaba por beneficiar um setor que tem realizado demissões em massa, em detrimento do setor que tem aproveitado essa mesma mão-de-obra. Há, portanto, uma clara inversão dos objetivos de propiciar uma maior geração de empregos.

Verifica-se que as mesmas razões que determinam um tratamento privilegiado para as empresas que apresentam um faturamento entre R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais) e R$ 720.000,00 (setecentos e vinte mil reais) anuais são aplicáveis às categorias elencadas no inciso XIII do art. 9º da lei nº 9.317/96. Esse fato acarreta ofensa ao princípio da isonomia.

Tamanha é a importância desse princípio para o direito tributário, que o constituinte considerou necessária a sua previsão em dispositivo específico. Este dispositivo é o inciso II do art. 150 de nossa Constituição que dispõe.

Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

II- instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos; (grifo nosso)

Verifica-se que nossa Constituição assegurou a isonomia como princípio genérico e também como princípio específico a ser aplicável ao sistema tributário. Essa garantia é não somente dirigida ao administrador público, mas também ao legislador. Observe-se, a esse respeito, o pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello.

Rezam as constituições – e a brasileira estabelece no art. 5º, caput – que todos são iguais perante a lei. Entende-se, em concorde unanimidade, que o alcance do princípio não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia.

O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas.

Por isso Francisco Campos lavrou, com pena de ouro, o seguinte asserto: Assim, não poderá subsistir qualquer dúvida quanto ao destinatário da cláusula constitucional da igualdade perante a lei. O seu destinatário é, precisamente, o legislador e, em conseqüência, a legislação; por mais discricionários que possam ser os critérios da política legislativa, encontra no princípio da igualdade a primeira e mais fundamental de suas limitações.

A Lei não deve ser fonte de privilégios ou de perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes.

A tese, que se postula aqui, não é a de que o legislador não possa realizar discriminações de nenhuma espécie. Na realidade, as discriminações feitas pelo legislador são constantes. Ocorre que há certos critérios que não foram observados para a realização das discriminações no presente caso.

Sobre os critérios a serem observados para a realização dessas diferenciações, cabe mencionar, mais uma vez, o ilustre jurista Celso Antônio Bandeira de Mello:

Parece-nos que o reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões:

a)      a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;

b)      a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;

c)      a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.

Esclarecendo melhor: tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles.

Em suma: importa que exista mais que uma correlação lógica abstrata entre o fator diferencial e a diferenciação conseqüente. Exige-se, ainda, haja uma correlação lógica concreta, ou seja, aferida em função dos interesses abrigados no direito positivo constitucional. E isto se traduz na consonância ou dissonância dela com as finalidades reconhecidas como valiosas na Constituição.

Só a conjunção dos três aspectos é que permite análise correta do problema. Isto é: a hostilidade ao preceito isonômico pode residir em quaisquer deles. Não basta, pois, reconhecer-se que uma regra de direito é ajustada ao princípio da igualdade no que pertine ao primeiro aspecto. Cumpre que o seja, também, com relação ao segundo e ao terceiro. É claro que a ofensa a requisitos do primeiro é suficiente para desqualificá-la. O mesmo, eventualmente, sucederá por desatenção a exigências dos demais, porém quer-se deixar bem explícita a necessidade de que a norma jurídica observe cumulativamente aos reclamos provenientes de todos os aspectos mencionados para ser inobjetável em face do princípio isonômico. No presente caso, esses três critérios foram afrontados. O primeiro, porque o legislador tomou como fator de desequiparação um elemento que lhe foi vedado expressamente pelo inciso II do art. 150 da Constituição Federal. 

O segundo, porque não há correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen (atividade específica da empresa) e a disparidade estabelecida no tratamento tributário (impossibilidade de opção pelo simples). É que o fato de uma empresa realizar serviços contábeis, por exemplo, não traz a conseqüência de que deva ser tributada de modo diferente em relação às demais empresas prestadoras de serviço. O ramo de atividade é o mesmo; apenas a atividade específica é que é diferente. 

Finalmente, o terceiro, porque, como se viu pela transcrição do artigo 179 da Constituição Federal, o constituinte pretendeu estabelecer tratamento diferenciado a todas as microempresas e empresas de pequeno porte e não apenas àquelas atuantes em uma área específica. E mais, porque o § 1º do art. 145 estabelece que os tributos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte e isso não foi levado em conta no presente caso.

Observe-se que o critério elencado pelo artigo 2º da lei nº 9.317/96 (receita bruta) obedece a todos esses requisitos. O primeiro, porque não há vedação a que se utilize a receita como fator de discriminação entre os contribuintes. Há, na realidade, um incentivo para a realização desse tipo de discriminação, devido ao princípio da capacidade contributiva previsto pelo § 1º  do art. 145 da Constituição Federal. A capacidade contributiva serve, ainda, para assegurar o atendimento ao segundo requisito. Sem dúvida, há correlação lógica no fato de que a tributação seja maior para aqueles que possuam maiores receitas e, em virtude disso, possam pagar um valor maior a título de tributos.

Finalmente, em terceiro lugar, a discriminação realizada desse modo atende ao preceito constitucional previsto pelo art. 179 da Constituição Federal e, portanto, está conforme os preceitos constitucionais.

O outro argumento também parece equivocado. É que, na realidade, o Judiciário não está atuando na hipótese em tela como legislador positivo. Está, isto sim, atuando como legislador negativo. A declaração de inconstitucionalidade do inciso XIII do art. 9º da lei nº 9.317/96 apenas representaria a retirada de uma restrição indevida.

A regra aplicável à hipótese já existe. É aquela prevista no art. 2º da lei nº 9.317/96. A declaração de inconstitucionalidade afetaria apenas um dispositivo que estabelece uma exceção à regra geral. A retirada de vigência do dispositivo excepcional apenas acarretaria a incidência da regra geral já existente. 

Verifica-se, assim, que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal merece reparos. Esperamos que, por ocasião do julgamento definitivo da ADIN 1.643-1, esse entendimento inicial venha a ser revisto.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BORNHOLDT, Max Roberto (coord./2001) ICMS/SC: regulamento anotado. 1ª edição. Curitiba:  Juruá.

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Desvio de poder na edição de medidas provisórias o caso r

Marcelo Harger 

 

                        É de conhecimento notório que o Brasil possui uma das cargas tributárias mais elevadas em nível mundial. Esse fato tem levado as empresas nacionais à bancarrota.

                        Procurando consertar os estragos até então causados, o Governo Federal instituiu, por intermédio da Lei nº 9.964/00, o programa de Recuperação Fiscal – Refis. Essa Lei foi alterada pela Lei nº 10.002, de 14 de setembro de 2000, que apenas prorrogou o prazo para a opção. Todas as demais normas mantiveram-se inalteradas.

                        Passados apenas quinze dias da edição da Lei nº 10.002/00, o Presidente da República editou a Medida Provisória nº 2.061/00, que, contrariando a manifesta vontade do legislador, alterou as regras para o Refis.

                        Dentre as várias modificações, uma causa espécie. É aquela prevista pelo art. 3º da mencionada Medida Provisória que dispõe:

Art. 3º – Na hipótese de opções formalizadas com base na Lei nº 10.002, de 14 de setembro de 2000, a pessoa jurídica optante deverá pagar, até a data da formalização da opção, as parcelas dos débitos incluídos no Refis ou no parcelamento a ele alternativo, relativas aos meses de abril ao da opção, acrescidos dos encargos correspondentes à TJLP, calculados a partir de maio de 2000, inclusive, até o mês do pagamento.

                        A inconstitucionalidade do artigo é flagrante. O Sr. Presidente da República editou uma Medida Provisória com efeitos retroativos. O contribuinte ingressaria no Refis a partir de 14 de setembro de 2000, mas ficaria sujeito a pagar parcelas referentes aos meses de abril a setembro do mesmo ano. Esse dispositivo foi mantido na Medida Provisória nº 2.061-1/00 (reedição da MP nº 2.061/00).

                        O dispositivo mencionado foi alterado a partir da Medida Provisória nº 2.061-2/00. E passou a ter a seguinte redação:

Art. 3º – Na hipótese de opções formalizadas com base da Lei nº 10.002, de 14 de setembro de 2000, a pessoa jurídica optante deverá adotar, para fins de determinação da parcela mensal, nos seis primeiros meses do parcelamento, o dobro do percentual a que estiver sujeito, nos termos estabelecidos no inciso II do § 4º do art. 2º da Lei nº 9.964/00.

                        Essa mesma redação foi mantida pela Medida Provisória nº 2.061-4/00, que foi convertida na nº 10.189/01, atualmente em vigor. A nova redação do dispositivo, aparentemente, acaba com a retroatividade inicial existente na Medida Provisória nº 2.061/00. Utilizamos o termo aparentemente, porque a clara intenção do Poder Executivo, com a nova redação da Medida Provisória, foi evitar a alegação de retroatividade da Lei que, sem dúvida, seria acatada pelo Judiciário. Ao assim agir, o Poder Executivo pretendeu obter a retroatividade da lei sob um manto de legalidade. Pretendeu alcançar um efeito prático equivalente ao da retroatividade, apenas alterando a redação do referido artigo. Falta, portanto, com o dever de boa fé que é inerente à Administração Pública. Age, ainda, com flagrante desvio de poder.

                        O desvio de poder é um fenômeno de grande incidência no Brasil. Pode-se dizer até que é um fenômeno mundial. Celso Antônio Bandeira de Mello é bastante claro quanto a esse aspecto:

Sabe-se que infelizmente, no Brasil, casos de desvio de poder existem aos racimos, ao ponto de poder-se imaginar que sejamos expoentes nesta matéria. Sem embargo, estas manifestações patológicas do exercício da autoridade pública ocorrem em toda parte. A doutrina alienígena tem-se debruçado com freqüência sobre o tema e os repertórios de jurisprudência estrangeiros nos dão notícia da universalidade desta anomalia. Nem existiriam tantos estudos sobre ela nem tantas decisões jurisprudências se não fora fenômeno corrente.

                        Especificamente sobre o caso brasileiro, afirma, ainda, o autor:

Os casos de desvio de poder no País são incontáveis e parecem assentar-se na concepção ingênua, até mesmo primitiva, de que as autoridades, sobretudo as investidas em cargos políticos, são como “donos” dos poderes públicos enquanto titularizam ditos cargos. Assim, são corriqueiras e feitas de público, ameaças de utilização das próprias competências para “retaliar” adversários políticos ou opositores que, no uso regular de competências públicas em outras esferas (como estaduais ou municipais) ou como cidadãos, resistem às orientações políticas do Governo Federal as quais, muitas vezes, padecem de ilegitimidade gritante ou escandalizam pela tolice, sobretudo nos dias que correm.

                        Vê-se que os casos de desvio de poder são bastante comuns no Brasil. Esse vício normalmente ocorre em relação a atos do Poder Executivo, mas nada impede que ocorra em relação a atos praticados pelo Legislativo e pelo Judiciário. Caio Tácito afirma a esse respeito que:

Tanto o desvio de poder legislativo, como o desvio de poder jurisdicional se podem caracterizar na medida em que o legislador ou o juiz destoem, de forma manifesta, do âmbito de seus poderes que, embora de reconhecida amplitude, não são ilimitados e atendem a fins que lhes são próprios e definidos.

                        Celso Antônio Bandeira de Mello concorda com Caio Tácito quanto a esse aspecto:

Vê-se, pois, que o desvio de poder é vício que pode afetar comportamento oriundo das funções típicas de quaisquer dos Poderes, já que, no Estado de Direito, as competências públicas não são “propriedade” de seus titulares, mas simples situações subjetivas ativas, compostas em vista da satisfação dos fins previstos nas normas superiores que lhe presidem a instituição.

                        Sobre o caso específico do desvio de poder em Medida Provisória, necessário se faz, ainda, ter em conta o ensinamento de Carlos Ari Sundfeld:

O ato legislativo também pode estar maculado por desvio de poder. Na realidade brasileira recente, o exemplo mais flagrante foi a edição, pelo Presidente da República, de medida provisória (que tem força de lei) limitando a concessão de liminares em ações judiciais propostas pelos particulares contra seus próprios atos. Afora outros problemas, tal medida é inválida porquanto, embora seja lícito legislar sobre a concessão de liminares, esse poder não pode ser usado com a finalidade de livrar do controle judicial certos atos do Poder Executivo.

                        A situação descrita por Carlos Ari Sundfeld é bastante similar àquela que ocorre no presente caso. É que a competência do Poder Executivo para editar medidas provisórias não lhe autoriza a editar dispositivos legais que objetivem apresentar efeitos retroativos. Há no presente caso a utilização de uma competência em desacordo com a finalidade que lhe preside a instituição.

                        Sobre o tema, Celso Antônio Bandeira de Mello também afirma:

Com efeito, cada caso expressivo de uma competência traz insculpido em si um destino correspondente àquela competência. Ora, cada competência só pode ser exercitada para alvejar os fins em vista dos quais foi normativamente instituída; donde, os atos consectários de uma competência não podem ser expedidos senão para atender às finalidades a ela inerentes. Daí serem viciados de desvio de poder os comportamentos administrativos que miram dado objetivo público por meio de atos cujos escopos, à luz do direito positivo, sejam os de servir outros objetivos públicos, distintos dos que foram colimados.

                        É essa situação que está a ocorrer no presente caso. O Poder Executivo editou as Medidas Provisórias 2.061/00 e 2.061-1/00 com o objetivo de fazer com que os contribuintes optantes pelo REFIS, após 14 de setembro de 2000, ficassem sujeitos ao pagamento de parcelas devidas a partir de abril daquele ano. Esse objetivo era nitidamente inconstitucional, pois representava a edição de uma Medida Provisória com efeitos retroativos. O mesmo objetivo norteou a edição das Medidas Provisórias 2.061-2/00, 2.061-3/00, 2.061-4. Apenas alterou-se a redação do artigo 3º para que a pretensão do Poder Executivo tivesse foros de legalidade. A alteração realizada, contudo, não retira a mácula existente e vicia por completo o conteúdo das Medidas Provisórias ora impugnadas. A conversão da Medida Provisória 2.061-4 na Lei n  10.189/01 não serve para sanar o vício, pois a lei de conversão padece dos mesmos vícios existentes na Medida Provisória.

 

 

BIBLIOGRAFIA

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TÁCITO, Caio (1997) Temas de direito público: estudos e pareceres. 1º vol.. Rio de Janeiro: Renovar.

 

 

 

 

 

A motivação do ato administrativo

Marcelo Harger 

                              

    Há na doutrina autores que defendem a obrigatoriedade da motivação do ato administrativo mesmo quando não prevista em lei e aqueles que a rejeitam. O fato é que se tem observado, em decorrência da crescente democratização do Estado moderno, uma evolução no sentido da necessidade de motivar previamente o ato administrativo.

                                   Na realidade, outra não pode ser a solução diante de nosso ordenamento positivo que considera o Estado Brasileiro como Estado Democrático de Direito.

                                   Através da motivação não se obtém necessariamente o respeito da lei por parte da Administração. Constitui, todavia, um elemento importante e simples para assegurar a legalidade do comportamento administrativo. É o que procuraremos demonstrar no presente trabalho.

 

1 Conceito:

 

                                   Os diversos autores que se dedicaram ao tema da motivação, normalmente a definem como a declaração das condições de fato e de direito que levam à prática do ato.

                                   Essa, por exemplo, é a posição de José Roberto Dromi: “La motivación es una declaración de cuáles son las circunstancias de hecho y de derecho que han llevado a la emanación del acto, y está contenida dentro de lo que usualmente se denomina ‘los considerandos’”.

                                   É uma concepção  incompleta. É necessário que se agregue outro elemento ao conceito de motivação para que tenhamos a compreensão total desse instituto que serve de base à análise da legitimidade dos atos da administração.

                                   Além das condições de fato e de direito que dão origem à prática do ato, a motivação deve conter, ainda, a demonstração do nexo de causalidade entre os fatos ocorridos (motivo) e o conteúdo do ato. Somente dessa maneira é que se poderá ter uma análise completa da legalidade do ato que é a razão maior da necessidade da motivação. Esse terceiro elemento terá grande importância para a determinação de vícios do ato discricionário.

                                   Por isso, podemos dizer que motivação é a declaração das condições de fato e de direito e do nexo de causalidade entre essas condições e o conteúdo do ato. É através dela que se demonstram as razões da decisão administrativa, o porquê da tomada de uma decisão e não de outra.

                                   “Não tem, em geral, forma definida em lei; às vezes, a motivação integra o próprio ato, vindo sob a forma de ‘consideranda’, outras vezes, está contida em parecer, laudo, relatório, emitido pelo próprio órgão, expedidor do ato ou por outro órgão, técnico ou jurídico, hipótese em que o ato faz remissão a esses precedentes. O importante é que o ato possa ter sua legalidade comprovada e isso só pode ser feito através da enunciação dos três elementos já mencionados.

 

2 Motivação – problema de forma ou de conteúdo?

 

                                   Parte da doutrina considera ser a motivação um mero problema de forma do ato administrativo . Outros, porém, consideram que esse é, na realidade um problema de “fundo” no ato administrativo.

                                   Na realidade, a motivação diz respeito aos dois aspectos. Por um lado é elemento formal, sem o qual o ato administrativo está viciado. Por outro lado, porém, a motivação explicita claramente as razões que levaram à prática do ato e isso implica, necessariamente, uma análise da substância do ato já que a fundamentação que não for dotada das características que referiremos adiante também viciará o ato.

 

3 A necessidade de motivação:

 

                                   Todos os atos administrativos devem ser motivados. A motivação deve ser prévia ou contemporânea à prática do ato. Somente em hipóteses excepcionais é que se admitirá a motivação do ato a posteriori. O princípio geral é de que todo ato que não apresentar motivação, ao menos concomitante à sua prática, é viciado.

                                   É que as motivações ulteriores poderiam ser fabricadas pela administração para justificar a prática do ato ilegal. Há, de fato, essa possibilidade, especialmente, em países como o Brasil onde os desmandos da Administração pública são de todos conhecidos. Permitir uma motivação posterior à edição do ato seria possibilitar um grande nível de arbitrariedade, especialmente, nos casos de discricionariedade.

                                   Não se pode deixar de reconhecer, todavia, que há certos atos onde a motivação prévia é impossível. Essa impossibilidade decorre da própria natureza desses atos. Esses atos são os atos orais, realizados por sinais e aqueles cuja urgência impediria a atuação da administração pública a contento caso houvesse a necessidade de motivação. Nesses casos a motivação normalmente surgirá apenas no momento em que forem impugnados. A partir desse momento surgirá a possibilidade de um controle de legalidade desses atos em relação à motivação. Os atos escritos, no entanto, deverão ser sempre motivados prévia ou concomitantemente à sua expedição.

 

4 Fundamento legal:

 

                                   Diversos autores afirmam que a motivação do ato administrativo somente é obrigatória nos casos em que houver expressa determinação legal. É verdade que nesses casos não se pode duvidar da necessidade da motivação. Ocorre que mesmo quando inexistir lei ordenando a motivação do ato, ainda assim, a obrigação subsiste.

                                   É que o dever de motivar o ato administrativo decorre implicitamente de diversos dispositivos consititucionais. É o que ficará evidenciado nos tópicos a seguir.

 

A administração pública exerce função administrativa

 

                                   A administração pública exerce função administrativa. Por isso, possui certas prerrogativas oriundas da supremacia do interesse público sobre o privado. Ocorre que essa posição privilegiada não pode ser utilizada de qualquer maneira. “É que a Administração exerce função: a função administrativa. Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, ‘deveres-poderes’, no interesse alheio”.

                                   A utilização desses poderes no interesse de terceiros implica a necessidade de existência de um meio de controle, por esses interessados, da correta atuação da administração. O meio mais eficaz para possibilitar o controle é a obrigatoriedade da motivação. A motivação, portanto, traduz a idéia de administração serviente.

 

O Estado democrático de direito

 

                                   O artigo 1º da Constituição Federal consagra como fundamento do Estado Brasileiro a cidadania. Consagra, ainda, os princípios do Estado de Direito e da soberania popular.

                                   O princípio do Estado de Direito implica a sujeição da Administração Pública à legalidade e esta somente pode ser comprovada pela motivação dos atos administrativos.

                                   A expressa menção à cidadania e à soberania popular como fundamentos de nosso Estado de Direito fazem com que os administrados tenham o direito de saber as razões das decisões tomadas por aqueles que devem servi-los.

 

O princípio da tripartição dos poderes

 

                                   A Constitiução Federal consagra o princípio da tripartição de poderes concebido por Montesquieu. Esse princípio parte da idéia base de que todo aquele que detém o poder tende a abusar dele. Essa é a razão da tripartição: a possibilidade de controle de um poder estatal através da atuação do outro. A inexistência de motivação nos atos administrativos inviabilizaria esse mecanismo, impossibilitanto ao judiciário exercer o controle sobre os atos administrativos e quebrando, com isso, esse princípio.

 

O princípio da legalidade:

 

                                   Além da legalidade que decorre diretamente do princípio constitucional do Estado de Direito, o constituinte consagrou expressamente a legalidade como princípio norteador da atividade estatal (art. 5º, II e 37 caput).

                                   Essa legalidade, conforme é cediço, deve ser entendida em sentido estrito, ou seja, o administrador só pode fazer aquilo que a lei lhe permite e a motivação garante o seu controle. 

Outros princípios constitucionais

 

                                   Há, ainda, outros princípios constitucionais que necessitam da motivação dos atos administrativos para alcançar efetividade. Estão previstos no caput do art. 37 da Constituição Federal: impessoalidade, moralidade e publicidade.

                                   A impessoalidade é um corolário do princípio da isonomia. Os atos administrativos devem ser sempre  norteados pela busca do interesse público. Não devem visar o atendimento de interesses particulares em detrimento dos interesses superiores da sociedade. A motivação aparece aqui como necessária à demonstração de inexistência de favorecimentos no atuar da administração.

                                   A moralidade foi erigida pela Constituição de 1988 em princípio Constitucional. Os atos imorais, sob esse prisma devem ser considerados inconstitucionais. A motivação pode ser um elemento bastante importante na verificação da moralidade dos atos administrativos.

                                   Os atos administrativos devem ser públicos. A sociedade tem o direito de saber a razão que levou a administração à prática de um certo ato. Isso somente pode ocorrer através da motivação.

                                   Cabe, ainda, mencionar que tratando-se de atos realizados no curso de procedimento administrativo, o dever de motivar tem fundamento, ainda, no princípio do contraditório.

5 Direito comparado:

 

                                   Quatro orientações tem sido seguidas ao redor do mundo no que tange ao dever de fundamentar o ato administrativo. Há países que possuem regras gerais de fundamentação como Suiça, Suécia, Estados Unidos da América, Checoslováquia, Alemanha e o direito comunitário europeu. Em outros países a legislação obriga a motivar somente certos atos (Espanha, Áustria, Iugoslávia, Itália, Polônia, Grécia, Portugal. Há países, ainda, nos quais é necessária a existência de lei que ordene a motivação do ato. Finalmente, há países onde a obrigação de fundamentar só existe mediante requerimento do interessado (Noruega e Grã-Bretanha).

 

6 Requisitos da motivação:

 

                                   A motivação apresenta requisitos formais e substanciais. Os requisitos formais somente estarão presentes quando a lei assim o determinar. Caso não haja determinação expressa a forma será livre. Uma boa forma a ser seguida, todavia, é a das sentenças judiciais. Nesse sentido uma fundamentação formalmente correta deveria conter: a-) um relatório; b-) a fundamentação; c-) a conclusão; d-) data e assinatura do prolator. Observe-se que a motivação sempre deverá ser feita por escrito.

                                   Os requisitos substanciais são clareza, suficiência e congruência.

Clareza

 

                                   A fundamentação deve ser clara. Deve permitir que de seus termos se consiga extrair o processo lógico e jurídico que conduziu à decisão. O administrado deve poder conhecer as razões determinantes da conduta do agente.

                                   Não basta invocar fórmulas vagas como “interesse público” ou “fins públicos”. É necessário que se esclareça no que consiste o interesse ou fim público diante do caso concreto.

 

Suficiência

 

                                   A fundamentação deve ser, também, suficiente. Não é necessário que seja extensa e sua adequação somente poderá ser verificada diante do caso concreto. Podem ser estabelecidas, todavia, algumas regras gerais.

                                   Em primeiro lugar, a fundamentação deve demonstrar o processo lógico que conduziu à elaboração do ato. Embora suscinta, deve demonstrar o iter percorrido pelo administrador até a prática do ato .  Em segundo lugar, não é suficiente elencar apenas os fundamentos de fato ou fazer referência somente ao preceito legal aplicável ao caso. É necessária a exposição de ambos e a demonstração da correlação entre eles, bem como a existência do nexo de causalidade entre os motivos e o conteúdo do ato.

                                   Em terceiro lugar, não se podem utilizar fórmulas que se limitem a dar um início de motivação ou apresentar diretamente uma conclusão. São as chamadas fórmulas passe-partout que nada esclarecem a respeito do ato. São vedadas, portanto, fórmulas como “indefiro nos termos da lei” ou “indefiro em virtude da ilegalidade da pretensão”.

                                   Finalmente, em quarto lugar, cumpre mencionar a exatidão. Os fatos devem ser verdadeiros e as razões de direito devem corresponder aos textos invocados.

 

Congruência

 

                                   A motivação deve ser, ainda, congruente. A congruência se manifesta em  planos: a-) entre as premissas de direito entre si; b-) entre as premissas de fato entre si; c-) entre as premissas de Direito e as premissas de fato e d-) entre as premissas de fato e de direito e o conteúdo do ato. É nesse último plano que se evidencia o vício em relação à causa do ato administrativo.

 

 

7 Ausência de motivação – Atos vinculados e atos discricionários:

 

                                   A motivação é necessária nos atos vinculados e nos atos discricionários. Em relação aos atos vinculados, é importante por demonstrar que o ato está em conformidade com a lei em todos os seus aspectos.

                                   Nos atos discricionários, a motivação é ainda mais importante. É que caso não fosse obrigatória a motivação impossível seria o controle dos atos discricionários do poder público. Nesse tema, bastante relevante é a noção de causa proposta por André Gonçalves Pereira e adotada por Celso Antônio Bandeira de Mello. Causa é a relação de adequação entre o motivo do ato e o seu conteúdo. Essa adequação somente pode ser verificada através da motivação. Inexistente a relação viciado estará o ato.

                                   A ausência de motivação prévia ou a motivação imperfeita, vicia o ato em ambos os casos (observem-se as exceções já feitas anteriormente). Esse vício não pode ser convalidado pois essa possibilidade daria margem ao arbítrio da administração.

 

CONCLUSÕES

 

1-) Motivação é a declaração das condições de fato e de direito e do nexo de causalidade entre essas condições e o conteúdo do ato. É através dela que se demonstram as razões da decisão administrativa, o porquê da tomada de uma decisão e não de outra.

2-) Todos os atos administrativos, sejam eles vinculados ou discricionários, devem ser motivados.

3-) A motivação fundamenta-se em princípios constitucionais

4-) A motivação apresenta requisitos formais  substanciais. Os requisitos formais somente são obrigatórios quando expressos em lei. Os requisitos substanciais devem ser sempre observados e consistem em clareza, suficiência e congruência.

5-) A inexistência de motivação ou de qualquer dos requisitos da motivação vicia o ato administrativo.



 

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QUEIRÓ,Afonso Rodrigues. Reflexões sobre a Teoria do Desvio de Poder em Direito Administrativo. Coimbra, Coimbra Editora, 1940.

 

 

 

 

A importância do processo administrativo

Marcelo Harger

 

 

O Direito Administrativo, desde sua origem, como o Direito Público em geral, apresenta um duplo aspecto. De um lado, visa a manutenção da autoridade do Poder Público. De outro, procura garantir o respeito às liberdades dos cidadãos por parte desse mesmo poder.

No decorrer da evolução do Direito Administrativo, esses dois aspectos variaram, havendo predomínio ora de um ora de outro aspecto. O que importa ressaltar a esse respeito é que, no período de evolução do chamado Estado-Polícia até o atual Estado Democrático de Direito, as garantias dos cidadãos foram assumindo um grau cada vez maior de importância. É assim que, enquanto no primeiro a Administração Pública não estava vinculada a qualquer tipo de norma que limitasse a sua atividade, pois o “príncipe” era o senhor absoluto do interesse público, no segundo a atividade administrativa do Estado passa a ser exercida somente de acordo com a lei. É nesse momento que assume relevância a questão do procedimento administrativo como forma de garantia dos interesses dos administrados e de uma Administração Pública mais clarividente.

Isso ocorre porque na época do Estado de Polícia o problema não se punha. É que o “príncipe”, como senhor do interesse público, não estava subordinado a qualquer norma. Imperava o arbítrio, entendido como a ausência de limitações legais. O Estado de Direito veio pôr fim a esta situação. A partir desse momento, o Estado passou a ter sua atividade limitada pelas leis. Essa foi a grande novidade do novo modelo. Agora, não somente os indivíduos devem respeito à lei, mas a própria Administração Pública passa a ter a sua atividade inteiramente vinculada aos ditames legais.

O novo modelo tem suas raízes no pensamento de Rousseau e Montesquieu. O primeiro sustenta a soberania popular, que retira do princípe o poder divino e dá base à atual idéia de democracia. O segundo, partindo do pressuposto que todo aquele que detém o poder tende a abusar dele, estipula um mecanismo de freios e contrapesos para evitar os abusos, pelo qual aquele que faz as leis não deve julgá-las nem executá-las; aquele que executa as leis não deve julgá-las nem fazê-las; e aquele que julga as leis não deve executá-las nem fazê-las. É assim que surgem as noções de poder executivo (aquele que executa as leis), legislativo (aquele que elabora as leis) e judiciário (aquele que julga) e com elas as noções de processo administrativo, processo legislativo e processo judicial, da maneira como os concebemos nos dias de hoje.

Essa nova concepção da organização estatal vem trazer uma contribuição bastante importante para o Direito Administrativo, que é o conceito de administração legal. A partir desse momento, a atividade administrativa passa a dever obediência à lei e aos interesses dos indivíduos que, com o seu consentimento, dão origem ao poder estatal. Mas a relação da Administração com a lei é bastante diferente daquela entre a lei e o particular. É que, enquanto o particular pode fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, a Administração somente pode fazer aquilo que a lei permite. De um lado, uma relação de não contradição que tem como pressuposto a autonomia da vontade. De outro, uma relação de subsunção que é associada à idéia de função, pois os agentes públicos não podem deixar de satisfazer os interesses cuja tutela lhes foi conferida pela lei.

É em torno dessa idéia de função que vai se desenvolver todo o Direito Público e, em especial, o Direito Administrativo. Mas o que é uma função para o Direito? Função é uma situação jurídica, criada em lei, onde se estabelece para alguém o dever de atingir uma certa finalidade no interesse de outrem. Para o fiel cumprimento dessa finalidade, o responsável necessita utilizar certos poderes indispensáveis à realização da tarefa que lhe foi conferida.

Verifica-se que a função tem um caráter meramente instrumental. Atinge esse fim fundado nesta norma, no dizer de Queiró. Há uma finalidade a ser cumprida que deve ser atingida de acordo com o disposto na norma que estabelece a função. Para que essa finalidade possa ser atingida, são atribuídos ao encarregado da função certos poderes que somente podem ser utilizados na direção estabelecida pela norma. Há, portanto, um dever-poder no exercício da função.

No desempenho desses poderes, a Administração acaba por se encontrar em uma situação sui generis, pois, ao mesmo tempo em que assume uma posição de superioridade diante dos administrados, como órgão responsável pela aplicação das leis para o atingimento das necessidades coletivas, fica subordinada à lei e ao controle judicial de seus atos.

No âmbito desse contexto, insere-se o processo administrativo, tema que vem ganhando cada vez mais importância dentro do direito administrativo. É que, nas últimas décadas, o Estado tem aumentado a sua ingerência nas mais diversas áreas da vida social e assumido atribuições que antes não possuía. Isso ocasionou uma atividade administrativa mais intensa e diversificada do que a existente anteriormente. Com a ampliação da área de atuação da Administração Pública, surgiu a necessidade de uma maior observância dos aspectos procedimentais para garantir o controle dos atos administrativos, alçando o tema do processo administrativo a um novo patamar.

O eterno conflito entre as prerrogativas da Administração Pública e os direitos dos administrados passa a ser visto sob uma nova ótica que confere um caráter mais democrático e transparente à atuação do Poder Público. Essa nova postura é o reflexo da noção de função aplicada ao Direito Administrativo.

É que o caráter funcional da atividade administrativa implica, necessariamente, a utilização de um iter que demonstre que a decisão administrativa proferida cumpre a finalidade prevista pela norma. Reduz-se, com isso, a possibilidade, ao administrador, de emanar atos baseados unicamente em critérios subjetivos e irracionais. Desse modo, torna-se possível manter o equilíbrio do binômio liberdade (dos administrados) e autoridade (do poder público). Mas o atingimento da finalidade prevista na norma não é suficiente. Deve-se atingir a finalidade através do modus procedendi previsto para tanto. É mediante o devido processo legal que se asseguram as garantias dos administrados. Não basta a prévia delimitação das finalidades a serem perseguidas pelo Estado. É necessária, também, a observância de meios e formas adequados para alcançá-las.

Verifica-se, então, a importância que passa a assumir o processo administrativo para a sociedade contemporânea. É que somente se podem alcançar os objetivos do Estado de Direito pela processualização da atividade administrativa. Esse é o único meio de assegurar a obediência da Administração Pública às finalidades legais e de permitir o controle da atividade dos agentes públicos pelo Judiciário e pelos cidadãos (por exemplo, por meio da ação popular). Somente desse modo é que se pode controlar a atuação administrativa em sua dinâmica. Há uma modificação da postura original pela qual a atividade dos particulares sofria a intervenção do poder público. Os indivíduos passam a interferir na atuação dos agentes públicos para garantir que estes observem as disposições legais.

Entretanto, a relevância do processo administrativo extrapola os limites da dimensão da atividade administrativa, pois serve, também, de meio para legitimar o próprio exercício do Poder. É que o caráter funcional da atividade administrativa implica a impossibilidade de utilização do Poder de modo opressivo. Isso demonstra a relevância dos diversos passos que levam à decisão final para a legitimação da atividade administrativa in concreto.

A análise realizada evidencia que a importância do processo administrativo sobressai pelos seguintes aspectos:

 

a-) possibilita o controle da atividade da administração pelos particulares e pelo judiciário;

 

b-) permite uma administração mais clarividente;

 

c-) resguarda os administrados contra atitudes arbitrárias por parte do Poder Público;

 

d-) legitima a atividade administrativa.

 

BIBLIOGRAFIA

FIGUEIREDO, Lúcia Valle (1994) Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros Editores.

 

LUHMANN, Niklas (1996) Legitimação pelo procedimento. Brasília: Universidade de Brasília.

 

MEDAUAR, Odete (1996) Direito administrativo moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais.

 

________ (coord) (1998) Processo administrativo aspectos atuais. São Paulo: Cultural Paulista.

 

MELLO, Celso Antônio Bandeira de (1992) Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros Editores.

 

________ (1996) Curso de direito administrativo. 8ª ed. rev. amp. São Paulo: Malheiros Editores.

 

________ (1985) Poder discricionário. Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 76.

 

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di (1991) Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas.

 

________ (1992) Direito administrativo. 3ª ed., São Paulo: Atlas.

 

QUEIRÓ, Afonso Rodrigues (1940) Reflexões sobre a teoria do desvio de poder em direito administrativo. Coimbra: Coimbra Editora.

 

SUNDFELD, Carlos Ari (1987) A importância do procedimento administrativo. Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 84: 64-74.

 

XAVIER, Alberto (1976) Do procedimento administrativo. São Paulo: José Bushatsky.

 

 

Breve estudo acerca da delimitação constitucional

Marcelo Harger 

 

1. Introdução

O Ministério Público brasileiro tem se destacado por uma incessante atuação em benefício do interesse público. No afã de defender os interesses da sociedade, contudo, algumas vezes atua sem ter competência para tanto. Há, inclusive, uma corrente doutrinária a defender que a simples presença em uma lide de um dos diferentes órgãos que integram o Ministério Público, conjugada com a existência de um interesse público, é suficiente para conferir legitimidade de atuação ao ente.
Essa concepção, contudo, é equivocada. É o que se demonstrará no presente trabalho.

2. A competência e a divisão de funções do Estado.


O homem é um ser social. Ao contrário de outras espécies, não se realiza solitariamente. Somente pode cumprir suas finalidades ao conjugar esforços com outras pessoas, pois tem necessidades que somente podem ser supridas por intermédio de uma atividade conjunta. É por essa razão que vive em sociedade.
Ao viver em sociedade, contudo, surge a necessidade de existência de regras para possibilitar que a convivência ocorra de modo harmônico, e de alguém responsável por assegurar a observância dessas regras. É dessa contingência que surge uma organização social que se denomina Estado. O elemento que possibilita que cumpra a sua função recebe o nome de Poder, que, de um modo simplificado, pode ser definido como ‘a faculdade que alguém tem de obter obediência para suas ordens’
1. Entendido desse modo, torna-se forçoso reconhecer que não é somente o Estado quem exerce o Poder. Diversas outras organizações sociais2 exercem algum tipo de poder. O Poder estatal, contudo, é de um tipo diferente, pois é o único legitimado para impor-se mediante a utilização de coação física. Pode utilizá-la por ter sido escolhido pela sociedade para tanto.
O Estado, contudo, como pessoa jurídica, somente pode se manifestar por intermédio de seres humanos. É por essa razão que se institucionaliza o uso do Poder, criando-se diferentes atribuições que são exercidas por diferentes autoridades. Somente aqueles legalmente investidos no Poder é que podem criar normas3 de obediência obrigatória pelos demais cidadãos.
Não se trata, portanto, da ‘lei’ do mais forte, mas daquele que é legitimado para editá-la. Isso significa dizer que o fenômeno do exercício do Poder estatal está diretamente ligado ao Direito e, por que não dizer, ao conceito de competência.
A esse …

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