Reflexões iniciais sobre o princípio da eficiência
Marcelo Harger
A emenda constitucional nº 19 trouxe diversas inovações ao direito administrativo brasileiro. A mais importante delas talvez tenha sido a inclusão do princípio da eficiência no caput do art. 37 de nossa Constituição. Fazemos essa afirmação porque esse artigo norteia toda a atividade administrativa do Estado brasileiro, seja ela da União, dos Estados, dos Municípios e demais entidades da administração pública direta e indireta.
Apesar do tempo decorrido , os estudos a respeito do tema ainda são escassos. É que, na realidade, os princípios jurídicos do direito administrativo tem sido pouco estudados. A doutrina, apesar da importância fundamental, não tem se aprofundado no tema.
Esse fato é alarmante, especialmente, porque a correta compreensão do sistema jurídico de um país depende diretamente do conhecimento dos princípios que o norteiam. É que os princípios são idéias centrais cuja compreensão é necessária para a correta interpretação das normas jurídicas. Eles possuem um caráter aglutinador que transforma as normas esparsas em um todo harmônico. Verifica-se, assim, num primeiro momento que os princípios servem para auxiliar o cientista do direito no conhecimento de seu objeto de estudo.
Essa, contudo, não é a única função dos princípios. É verdade que o direito, como qualquer ciência, depende da enunciação de seus princípios básicos, mas o jurista via além disto. É que para o estudioso do direito os princípios têm um caráter eminentemente prático, pois constituem verdadeiras normas jurídicas possuem um caráter normativo que se irradia por todo o sistema e que se apresenta sob um duplo aspecto. O primeiro é um aspecto positivo que decorre da influência que exercem na elaboração de normas e nas atividades de interpretação e integração do direito. O segundo é um aspecto negativo que se caracteriza pela rejeição dos valores que os contrariem.
Compreende-se, assim, a razão pela qual constantemente se afirma que violar um princípio é mais sério do que violar uma simples norma. É que a afronta a um princípio faz ruir todo o sistema causando a desestruturação de todo o ordenamento jurídico.
Essas constatações são ainda mais relevantes se nos ativermos ao caso do direito público e, em especial, do direito administrativo. É que esse ramo do direito possui uma elaboração bastante recente e ainda não está codificado. As normas encontram-se dispersas e são produzidas sem método. Não é rara, também, a existência de lacunas legais. Os princípios aparecem, então, como meio de solucionar esses problemas.
É dentro desse prisma que procuraremos analisar o princípio da eficiência.
O Estado de Direito e a Limitação do Poder Executivo:
A Constituição Federal, em seu artigo 1º dispõe que o estado brasileiro é um Estado Democrático de Direito e que “todo o poder emana do povo”. Dispõe, ainda, em seu artigo 2º que “são poderes da união, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
A leitura desses artigos demonstra que o constituinte brasileiro, foi influenciado pelas concepções de Rousseau e Montesquieu e, em decorrência disso erigiu um Estado que, no dizer de Carlos Ari Sundfeld é baseado nos seguintes elementos: “a-) criado e regulado por uma Constituição; b-) os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres; c-) o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo, em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos, que controlam uns aos outros; d-) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observada pelos demais poderes; e-) os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive políticos, podem opô-los ao próprio Estado”. Esse fato tem bastante relevância pois a concepção de Estado influencia sobremaneira o direito administrativo e, porque não dizer, o direito público em geral.
É que, inicialmente, havia apenas o soberano que detinha em suas mãos o poder de administrar, ditar as leis e julgar. O “príncipe”, como senhor do interesse público, não estava subordinado a qualquer norma. Imperava o arbítrio, entendido como a ausência de limitações legais . Através de uma lenta evolução, essas atividades foram sendo atribuídas a órgãos distintos, sempre com o objetivo de limitar o poder. Essa evolução culmina com o advento do Estado de Direito. A partir desse momento, o Estado passou a ter sua atividade limitada pelas leis, que são criadas pelos representantes do povo. Essa foi a grande novidade do novo modelo. Agora, não somente os indivíduos devem respeito à lei, mas a própria administração pública passa a ter a sua atividade inteiramente vinculada aos ditames legais.
O novo modelo tem suas raízes no pensamento de Rousseau e Montesquieu. O primeiro sustenta a soberania popular, que retira do princípe o poder divino e dá base à atual idéia de democracia. O segundo, partindo do pressuposto de que todo aquele que detém o poder tende a abusar dele, estipula um mecanismo de freios e contrapesos, para evitar os abusos, pelo qual aquele que faz as leis não deve julgá-las nem executá-las; aquele que executa as leis não deve julgá-las nem fazê-las; e aquele que julga as leis não deve executá-las nem fazê-las. É assim que surgem as noções de poder executivo (aquele que executa as leis), legislativo (aquele que elabora as leis) e judiciário (aquele que julga).
Essa nova concepção da organização estatal vem a trazer uma contribuição bastante importante para o Direito Administrativo que é o conceito de Administração legal. A partir desse momento, a atividade administrativa passa a dever obediência à lei e aos interesses dos indivíduos que, “com o seu consentimento” dão origem ao poder estatal.
A Função Administrativa
A relação da Administração com a lei é bastante diferente daquela entre a lei e o particular. É que enquanto o particular pode fazer tudo aquilo que a lei não proibe, a Administração somente pode fazer aquilo que a lei permite. De um lado, uma relação de não contradição que tem como pressuposto a autonomia da vontade. De outro, uma relação de subsunção que é associada à idéia de função pois os agentes públicos não podem deixar de satisfazer os interesses cuja tutela lhes foi conferida pela lei.
É em torno dessa idéia de função que vai se desenvolver todo o Direito Público e, em especial, o Direito Administrativo. Mas o que é uma função para o Direito? Função é uma situação jurídica, criada em lei, onde se estabelece para alguém o dever de atingir uma certa finalidade no interesse de outrem. Para o fiel cumprimento dessa finalidade, o responsável necessita utilizar certos poderes indispensáveis à realização da tarefa que lhe foi conferida.
Verifica-se que a função tem um caráter meramente instrumental. “Atinge esse fim fundado nesta norma” no dizer de Queiró. Há uma finalidade a ser cumprida que deve ser atingida de acordo com o disposto na norma que estabelece a função. Para que essa finalidade possa ser atingida são atribuídos ao encarregado da função certos poderes que somente podem ser utilizados na direção estabelecida pela norma. Há, portanto, um dever-poder no exercício da função.
No exercício desses poderes, a Administração acaba por se encontrar em uma situação sui generis pois, ao mesmo tempo em que assume uma posição de superioridade diante dos administrados, como órgão responsável pela aplicação das leis para o atingimento das necessidades coletivas, fica subordinada à lei e ao controle judicial de seus atos.
Isso ocorre porque onde há função não lugar para autonomia da vontade nem para a busca de interesses próprios ou pessoais. Há, isto sim, a necessidade de se atender uma certa finalidade prevista em lei.
Mas não é só o administrador que exerce função. O legislador e o juiz também atuam funcionalmente. É que os órgãos estatais não são titulares do poder que lhes foi conferido pela Constituição. Por isso, no exercício do poder não há qualquer direito subjetivo dos governantes. Há, isto sim, o dever de atuar conforme a competência que lhes foi atribuída.
O Legislador e a busca da solução que melhor atende aos interesses da coletividade
Já se estabeleceu que os administradores, juízes e legisladores exercem função. Estabeleceu-se, também que no Estado de Direito há o primado da legalidade. Esse fato acarreta uma certa supremacia do legislador em relação aos demais poderes. É que, desde que respeitada a Constituição, o legislador é quem estabelece as condutas a serem tomadas pelos demais poderes que limitar-se-iam a aplicar a lei. É por isso que se diz que a liberdade do legislador é maior que a existente em relação aos demais poderes. Respeitadas as diretrizes constitucionais, cabe ao legislador traçar o rumo a ser tomado pelo Estado com o objetivo de tornar efetivos os valores consagrados pela Constituição. Sob esse prisma, caberá ao executivo dar efetividade ao programa do legislador e ao judiciário controlar a conformidade dos atos do legislativo e do executivo com a Constituição e a dos atos desse último com a legalidade.
Na busca pela efetivação desses valores o legislador deve sempre procurar a melhor solução na gestão dos interesses da sociedade. É que, conforme já se afirmou, o legislador atua como representante do povo e não se pode conceber que, podendo optar pela melhor, ele escolha a pior solução. Para o atingimento desse objetivo o legislador pode atuar de duas maneiras. Na primeira estabelece em lei exatamente qual conduta deverá ser adotada pelo poder executivo diante de uma dada situação concreta. Há, aqui, uma pré-escolha da solução mais adequada para um caso concreto. Diz-se nesse caso que a atividade da administração pública será vinculada.
Na segunda, o legislador não estabelece de modo completo qual é a atuação que melhor atenderá ao interesse público. Age o legislador dessa maneira porque em certos casos não se pode saber previamente qual solução, dentre as várias disponíveis, atenderá o interesse público. Deixa, então, ao administrador a possibilidade de escolher diante do caso concreto qual a solução que melhor assegura o atendimento dos interesses coletivos. Diz-se, nesse caso, que há discricionariedade.
Ocorre que a existência de discricionariedade no plano da norma não significa que, diante do caso concreto, o administrador possa optar pela solução que melhor lhe aprouver, segundo critérios unicamente subjetivos. É que, como já se disse, a norma sempre busca a solução ótima e não pode o administrador utilizando uma prerrogativa pretensamente discricionária, diante da existência de duas soluções para um caso concreto, optar pela pior delas. A discrição administrativa não significa liberdade para o administrador eleger qualquer solução ao acaso diante do caso concreto. A lei não considera que todas as soluções sejam igualmente justas para todos os casos. Considera, isto sim, que algumas soluções são justas para uma espécie de casos e outras para as demais espécies. Diante da grande quantidade de situações possíveis, a lei deixa ao administrador a prerrogativa de verificar diante do caso concreto qual a melhor solução a ser aplicada. Esclarecendo melhor, a existência de discricionariedade no plano da norma não implica discrição perante o caso concreto. Os fatos servem de parâmetros a balizar a previsão abstrata prevista pela norma e podem chegar até a eliminar a discricionariedade diante do caso concreto.
O princípio da eficiência
Demonstrou-se no item anterior que o administrador, mesmo nos casos nos quais a norma lhe confira discricionariedade, deve sempre procurar a solução que melhor atenda ao interesse público do qual é curador. Esse entendimento nada mais significa do que a consagração do princípio da eficiência em nosso ordenamento jurídico. Ele não é inédito no direito brasileiro. Hely Lopes Meirelles já defendia, há muito tempo, sua existência mesmo sem estar previsto expressamente em nossa Constituição. É que ele se relaciona com diversos outros princípios constitucionais aplicáveis às atividades da administração pública. Conforme já se evidenciou, é uma conseqüência lógica do princípio do Estado de Direito. É, também, uma faceta do princípio da legalidade e confunde-se com os princípios da moralidade e da razoabilidade da administração.
Apesar disso, possui conteúdo próprio. Traduz o dever de administrar, não só de modo razoável e conforme a moral, mas utilizando as melhores opções disponíveis. É o dever de alcançar a solução que seja ótima ao atendimento das finalidades públicas. Não basta que seja uma solução possível. Deve, isto sim, ser a melhor solução. Há um dever jurídico de boa administração para o atendimento da finalidade legal.
“É de se presumir que, não sendo a lei um ato meramente aleatório, só pode pretender, tanto nos casos de vinculação, quanto nos casos de discrição, que a conduta do administrador atenda excelentemente, à perfeição, a finalidade que a animou. Em outras palavras, a lei só quer aquele específico ato que venha a calhar à fiveleta para o atendimento do interesse público. Tanto faz que se trate de vinculação, quando de comando da norma sempre propõe isto e se uma norma é uma imposição, o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei”.
3-) o princípio da eficiência limita a atuação discricionária dos agentes públicos;
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