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A motivação do ato administrativo

Marcelo Harger 

                              

    Há na doutrina autores que defendem a obrigatoriedade da motivação do ato administrativo mesmo quando não prevista em lei e aqueles que a rejeitam. O fato é que se tem observado, em decorrência da crescente democratização do Estado moderno, uma evolução no sentido da necessidade de motivar previamente o ato administrativo.

                                   Na realidade, outra não pode ser a solução diante de nosso ordenamento positivo que considera o Estado Brasileiro como Estado Democrático de Direito.

                                   Através da motivação não se obtém necessariamente o respeito da lei por parte da Administração. Constitui, todavia, um elemento importante e simples para assegurar a legalidade do comportamento administrativo. É o que procuraremos demonstrar no presente trabalho.

 

1 Conceito:

 

                                   Os diversos autores que se dedicaram ao tema da motivação, normalmente a definem como a declaração das condições de fato e de direito que levam à prática do ato.

                                   Essa, por exemplo, é a posição de José Roberto Dromi: “La motivación es una declaración de cuáles son las circunstancias de hecho y de derecho que han llevado a la emanación del acto, y está contenida dentro de lo que usualmente se denomina ‘los considerandos’”.

                                   É uma concepção  incompleta. É necessário que se agregue outro elemento ao conceito de motivação para que tenhamos a compreensão total desse instituto que serve de base à análise da legitimidade dos atos da administração.

                                   Além das condições de fato e de direito que dão origem à prática do ato, a motivação deve conter, ainda, a demonstração do nexo de causalidade entre os fatos ocorridos (motivo) e o conteúdo do ato. Somente dessa maneira é que se poderá ter uma análise completa da legalidade do ato que é a razão maior da necessidade da motivação. Esse terceiro elemento terá grande importância para a determinação de vícios do ato discricionário.

                                   Por isso, podemos dizer que motivação é a declaração das condições de fato e de direito e do nexo de causalidade entre essas condições e o conteúdo do ato. É através dela que se demonstram as razões da decisão administrativa, o porquê da tomada de uma decisão e não de outra.

                                   “Não tem, em geral, forma definida em lei; às vezes, a motivação integra o próprio ato, vindo sob a forma de ‘consideranda’, outras vezes, está contida em parecer, laudo, relatório, emitido pelo próprio órgão, expedidor do ato ou por outro órgão, técnico ou jurídico, hipótese em que o ato faz remissão a esses precedentes. O importante é que o ato possa ter sua legalidade comprovada e isso só pode ser feito através da enunciação dos três elementos já mencionados.

 

2 Motivação – problema de forma ou de conteúdo?

 

                                   Parte da doutrina considera ser a motivação um mero problema de forma do ato administrativo . Outros, porém, consideram que esse é, na realidade um problema de “fundo” no ato administrativo.

                                   Na realidade, a motivação diz respeito aos dois aspectos. Por um lado é elemento formal, sem o qual o ato administrativo está viciado. Por outro lado, porém, a motivação explicita claramente as razões que levaram à prática do ato e isso implica, necessariamente, uma análise da substância do ato já que a fundamentação que não for dotada das características que referiremos adiante também viciará o ato.

 

3 A necessidade de motivação:

 

                                   Todos os atos administrativos devem ser motivados. A motivação deve ser prévia ou contemporânea à prática do ato. Somente em hipóteses excepcionais é que se admitirá a motivação do ato a posteriori. O princípio geral é de que todo ato que não apresentar motivação, ao menos concomitante à sua prática, é viciado.

                                   É que as motivações ulteriores poderiam ser fabricadas pela administração para justificar a prática do ato ilegal. Há, de fato, essa possibilidade, especialmente, em países como o Brasil onde os desmandos da Administração pública são de todos conhecidos. Permitir uma motivação posterior à edição do ato seria possibilitar um grande nível de arbitrariedade, especialmente, nos casos de discricionariedade.

                                   Não se pode deixar de reconhecer, todavia, que há certos atos onde a motivação prévia é impossível. Essa impossibilidade decorre da própria natureza desses atos. Esses atos são os atos orais, realizados por sinais e aqueles cuja urgência impediria a atuação da administração pública a contento caso houvesse a necessidade de motivação. Nesses casos a motivação normalmente surgirá apenas no momento em que forem impugnados. A partir desse momento surgirá a possibilidade de um controle de legalidade desses atos em relação à motivação. Os atos escritos, no entanto, deverão ser sempre motivados prévia ou concomitantemente à sua expedição.

 

4 Fundamento legal:

 

                                   Diversos autores afirmam que a motivação do ato administrativo somente é obrigatória nos casos em que houver expressa determinação legal. É verdade que nesses casos não se pode duvidar da necessidade da motivação. Ocorre que mesmo quando inexistir lei ordenando a motivação do ato, ainda assim, a obrigação subsiste.

                                   É que o dever de motivar o ato administrativo decorre implicitamente de diversos dispositivos consititucionais. É o que ficará evidenciado nos tópicos a seguir.

 

A administração pública exerce função administrativa

 

                                   A administração pública exerce função administrativa. Por isso, possui certas prerrogativas oriundas da supremacia do interesse público sobre o privado. Ocorre que essa posição privilegiada não pode ser utilizada de qualquer maneira. “É que a Administração exerce função: a função administrativa. Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, ‘deveres-poderes’, no interesse alheio”.

                                   A utilização desses poderes no interesse de terceiros implica a necessidade de existência de um meio de controle, por esses interessados, da correta atuação da administração. O meio mais eficaz para possibilitar o controle é a obrigatoriedade da motivação. A motivação, portanto, traduz a idéia de administração serviente.

 

O Estado democrático de direito

 

                                   O artigo 1º da Constituição Federal consagra como fundamento do Estado Brasileiro a cidadania. Consagra, ainda, os princípios do Estado de Direito e da soberania popular.

                                   O princípio do Estado de Direito implica a sujeição da Administração Pública à legalidade e esta somente pode ser comprovada pela motivação dos atos administrativos.

                                   A expressa menção à cidadania e à soberania popular como fundamentos de nosso Estado de Direito fazem com que os administrados tenham o direito de saber as razões das decisões tomadas por aqueles que devem servi-los.

 

O princípio da tripartição dos poderes

 

                                   A Constitiução Federal consagra o princípio da tripartição de poderes concebido por Montesquieu. Esse princípio parte da idéia base de que todo aquele que detém o poder tende a abusar dele. Essa é a razão da tripartição: a possibilidade de controle de um poder estatal através da atuação do outro. A inexistência de motivação nos atos administrativos inviabilizaria esse mecanismo, impossibilitanto ao judiciário exercer o controle sobre os atos administrativos e quebrando, com isso, esse princípio.

 

O princípio da legalidade:

 

                                   Além da legalidade que decorre diretamente do princípio constitucional do Estado de Direito, o constituinte consagrou expressamente a legalidade como princípio norteador da atividade estatal (art. 5º, II e 37 caput).

                                   Essa legalidade, conforme é cediço, deve ser entendida em sentido estrito, ou seja, o administrador só pode fazer aquilo que a lei lhe permite e a motivação garante o seu controle. 

Outros princípios constitucionais

 

                                   Há, ainda, outros princípios constitucionais que necessitam da motivação dos atos administrativos para alcançar efetividade. Estão previstos no caput do art. 37 da Constituição Federal: impessoalidade, moralidade e publicidade.

                                   A impessoalidade é um corolário do princípio da isonomia. Os atos administrativos devem ser sempre  norteados pela busca do interesse público. Não devem visar o atendimento de interesses particulares em detrimento dos interesses superiores da sociedade. A motivação aparece aqui como necessária à demonstração de inexistência de favorecimentos no atuar da administração.

                                   A moralidade foi erigida pela Constituição de 1988 em princípio Constitucional. Os atos imorais, sob esse prisma devem ser considerados inconstitucionais. A motivação pode ser um elemento bastante importante na verificação da moralidade dos atos administrativos.

                                   Os atos administrativos devem ser públicos. A sociedade tem o direito de saber a razão que levou a administração à prática de um certo ato. Isso somente pode ocorrer através da motivação.

                                   Cabe, ainda, mencionar que tratando-se de atos realizados no curso de procedimento administrativo, o dever de motivar tem fundamento, ainda, no princípio do contraditório.

5 Direito comparado:

 

                                   Quatro orientações tem sido seguidas ao redor do mundo no que tange ao dever de fundamentar o ato administrativo. Há países que possuem regras gerais de fundamentação como Suiça, Suécia, Estados Unidos da América, Checoslováquia, Alemanha e o direito comunitário europeu. Em outros países a legislação obriga a motivar somente certos atos (Espanha, Áustria, Iugoslávia, Itália, Polônia, Grécia, Portugal. Há países, ainda, nos quais é necessária a existência de lei que ordene a motivação do ato. Finalmente, há países onde a obrigação de fundamentar só existe mediante requerimento do interessado (Noruega e Grã-Bretanha).

 

6 Requisitos da motivação:

 

                                   A motivação apresenta requisitos formais e substanciais. Os requisitos formais somente estarão presentes quando a lei assim o determinar. Caso não haja determinação expressa a forma será livre. Uma boa forma a ser seguida, todavia, é a das sentenças judiciais. Nesse sentido uma fundamentação formalmente correta deveria conter: a-) um relatório; b-) a fundamentação; c-) a conclusão; d-) data e assinatura do prolator. Observe-se que a motivação sempre deverá ser feita por escrito.

                                   Os requisitos substanciais são clareza, suficiência e congruência.

Clareza

 

                                   A fundamentação deve ser clara. Deve permitir que de seus termos se consiga extrair o processo lógico e jurídico que conduziu à decisão. O administrado deve poder conhecer as razões determinantes da conduta do agente.

                                   Não basta invocar fórmulas vagas como “interesse público” ou “fins públicos”. É necessário que se esclareça no que consiste o interesse ou fim público diante do caso concreto.

 

Suficiência

 

                                   A fundamentação deve ser, também, suficiente. Não é necessário que seja extensa e sua adequação somente poderá ser verificada diante do caso concreto. Podem ser estabelecidas, todavia, algumas regras gerais.

                                   Em primeiro lugar, a fundamentação deve demonstrar o processo lógico que conduziu à elaboração do ato. Embora suscinta, deve demonstrar o iter percorrido pelo administrador até a prática do ato .  Em segundo lugar, não é suficiente elencar apenas os fundamentos de fato ou fazer referência somente ao preceito legal aplicável ao caso. É necessária a exposição de ambos e a demonstração da correlação entre eles, bem como a existência do nexo de causalidade entre os motivos e o conteúdo do ato.

                                   Em terceiro lugar, não se podem utilizar fórmulas que se limitem a dar um início de motivação ou apresentar diretamente uma conclusão. São as chamadas fórmulas passe-partout que nada esclarecem a respeito do ato. São vedadas, portanto, fórmulas como “indefiro nos termos da lei” ou “indefiro em virtude da ilegalidade da pretensão”.

                                   Finalmente, em quarto lugar, cumpre mencionar a exatidão. Os fatos devem ser verdadeiros e as razões de direito devem corresponder aos textos invocados.

 

Congruência

 

                                   A motivação deve ser, ainda, congruente. A congruência se manifesta em  planos: a-) entre as premissas de direito entre si; b-) entre as premissas de fato entre si; c-) entre as premissas de Direito e as premissas de fato e d-) entre as premissas de fato e de direito e o conteúdo do ato. É nesse último plano que se evidencia o vício em relação à causa do ato administrativo.

 

 

7 Ausência de motivação – Atos vinculados e atos discricionários:

 

                                   A motivação é necessária nos atos vinculados e nos atos discricionários. Em relação aos atos vinculados, é importante por demonstrar que o ato está em conformidade com a lei em todos os seus aspectos.

                                   Nos atos discricionários, a motivação é ainda mais importante. É que caso não fosse obrigatória a motivação impossível seria o controle dos atos discricionários do poder público. Nesse tema, bastante relevante é a noção de causa proposta por André Gonçalves Pereira e adotada por Celso Antônio Bandeira de Mello. Causa é a relação de adequação entre o motivo do ato e o seu conteúdo. Essa adequação somente pode ser verificada através da motivação. Inexistente a relação viciado estará o ato.

                                   A ausência de motivação prévia ou a motivação imperfeita, vicia o ato em ambos os casos (observem-se as exceções já feitas anteriormente). Esse vício não pode ser convalidado pois essa possibilidade daria margem ao arbítrio da administração.

 

CONCLUSÕES

 

1-) Motivação é a declaração das condições de fato e de direito e do nexo de causalidade entre essas condições e o conteúdo do ato. É através dela que se demonstram as razões da decisão administrativa, o porquê da tomada de uma decisão e não de outra.

2-) Todos os atos administrativos, sejam eles vinculados ou discricionários, devem ser motivados.

3-) A motivação fundamenta-se em princípios constitucionais

4-) A motivação apresenta requisitos formais  substanciais. Os requisitos formais somente são obrigatórios quando expressos em lei. Os requisitos substanciais devem ser sempre observados e consistem em clareza, suficiência e congruência.

5-) A inexistência de motivação ou de qualquer dos requisitos da motivação vicia o ato administrativo.



 

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