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Desvio de poder na edição de medidas provisórias o caso r

Marcelo Harger 

 

                        É de conhecimento notório que o Brasil possui uma das cargas tributárias mais elevadas em nível mundial. Esse fato tem levado as empresas nacionais à bancarrota.

                        Procurando consertar os estragos até então causados, o Governo Federal instituiu, por intermédio da Lei nº 9.964/00, o programa de Recuperação Fiscal – Refis. Essa Lei foi alterada pela Lei nº 10.002, de 14 de setembro de 2000, que apenas prorrogou o prazo para a opção. Todas as demais normas mantiveram-se inalteradas.

                        Passados apenas quinze dias da edição da Lei nº 10.002/00, o Presidente da República editou a Medida Provisória nº 2.061/00, que, contrariando a manifesta vontade do legislador, alterou as regras para o Refis.

                        Dentre as várias modificações, uma causa espécie. É aquela prevista pelo art. 3º da mencionada Medida Provisória que dispõe:

Art. 3º – Na hipótese de opções formalizadas com base na Lei nº 10.002, de 14 de setembro de 2000, a pessoa jurídica optante deverá pagar, até a data da formalização da opção, as parcelas dos débitos incluídos no Refis ou no parcelamento a ele alternativo, relativas aos meses de abril ao da opção, acrescidos dos encargos correspondentes à TJLP, calculados a partir de maio de 2000, inclusive, até o mês do pagamento.

                        A inconstitucionalidade do artigo é flagrante. O Sr. Presidente da República editou uma Medida Provisória com efeitos retroativos. O contribuinte ingressaria no Refis a partir de 14 de setembro de 2000, mas ficaria sujeito a pagar parcelas referentes aos meses de abril a setembro do mesmo ano. Esse dispositivo foi mantido na Medida Provisória nº 2.061-1/00 (reedição da MP nº 2.061/00).

                        O dispositivo mencionado foi alterado a partir da Medida Provisória nº 2.061-2/00. E passou a ter a seguinte redação:

Art. 3º – Na hipótese de opções formalizadas com base da Lei nº 10.002, de 14 de setembro de 2000, a pessoa jurídica optante deverá adotar, para fins de determinação da parcela mensal, nos seis primeiros meses do parcelamento, o dobro do percentual a que estiver sujeito, nos termos estabelecidos no inciso II do § 4º do art. 2º da Lei nº 9.964/00.

                        Essa mesma redação foi mantida pela Medida Provisória nº 2.061-4/00, que foi convertida na nº 10.189/01, atualmente em vigor. A nova redação do dispositivo, aparentemente, acaba com a retroatividade inicial existente na Medida Provisória nº 2.061/00. Utilizamos o termo aparentemente, porque a clara intenção do Poder Executivo, com a nova redação da Medida Provisória, foi evitar a alegação de retroatividade da Lei que, sem dúvida, seria acatada pelo Judiciário. Ao assim agir, o Poder Executivo pretendeu obter a retroatividade da lei sob um manto de legalidade. Pretendeu alcançar um efeito prático equivalente ao da retroatividade, apenas alterando a redação do referido artigo. Falta, portanto, com o dever de boa fé que é inerente à Administração Pública. Age, ainda, com flagrante desvio de poder.

                        O desvio de poder é um fenômeno de grande incidência no Brasil. Pode-se dizer até que é um fenômeno mundial. Celso Antônio Bandeira de Mello é bastante claro quanto a esse aspecto:

Sabe-se que infelizmente, no Brasil, casos de desvio de poder existem aos racimos, ao ponto de poder-se imaginar que sejamos expoentes nesta matéria. Sem embargo, estas manifestações patológicas do exercício da autoridade pública ocorrem em toda parte. A doutrina alienígena tem-se debruçado com freqüência sobre o tema e os repertórios de jurisprudência estrangeiros nos dão notícia da universalidade desta anomalia. Nem existiriam tantos estudos sobre ela nem tantas decisões jurisprudências se não fora fenômeno corrente.

                        Especificamente sobre o caso brasileiro, afirma, ainda, o autor:

Os casos de desvio de poder no País são incontáveis e parecem assentar-se na concepção ingênua, até mesmo primitiva, de que as autoridades, sobretudo as investidas em cargos políticos, são como “donos” dos poderes públicos enquanto titularizam ditos cargos. Assim, são corriqueiras e feitas de público, ameaças de utilização das próprias competências para “retaliar” adversários políticos ou opositores que, no uso regular de competências públicas em outras esferas (como estaduais ou municipais) ou como cidadãos, resistem às orientações políticas do Governo Federal as quais, muitas vezes, padecem de ilegitimidade gritante ou escandalizam pela tolice, sobretudo nos dias que correm.

                        Vê-se que os casos de desvio de poder são bastante comuns no Brasil. Esse vício normalmente ocorre em relação a atos do Poder Executivo, mas nada impede que ocorra em relação a atos praticados pelo Legislativo e pelo Judiciário. Caio Tácito afirma a esse respeito que:

Tanto o desvio de poder legislativo, como o desvio de poder jurisdicional se podem caracterizar na medida em que o legislador ou o juiz destoem, de forma manifesta, do âmbito de seus poderes que, embora de reconhecida amplitude, não são ilimitados e atendem a fins que lhes são próprios e definidos.

                        Celso Antônio Bandeira de Mello concorda com Caio Tácito quanto a esse aspecto:

Vê-se, pois, que o desvio de poder é vício que pode afetar comportamento oriundo das funções típicas de quaisquer dos Poderes, já que, no Estado de Direito, as competências públicas não são “propriedade” de seus titulares, mas simples situações subjetivas ativas, compostas em vista da satisfação dos fins previstos nas normas superiores que lhe presidem a instituição.

                        Sobre o caso específico do desvio de poder em Medida Provisória, necessário se faz, ainda, ter em conta o ensinamento de Carlos Ari Sundfeld:

O ato legislativo também pode estar maculado por desvio de poder. Na realidade brasileira recente, o exemplo mais flagrante foi a edição, pelo Presidente da República, de medida provisória (que tem força de lei) limitando a concessão de liminares em ações judiciais propostas pelos particulares contra seus próprios atos. Afora outros problemas, tal medida é inválida porquanto, embora seja lícito legislar sobre a concessão de liminares, esse poder não pode ser usado com a finalidade de livrar do controle judicial certos atos do Poder Executivo.

                        A situação descrita por Carlos Ari Sundfeld é bastante similar àquela que ocorre no presente caso. É que a competência do Poder Executivo para editar medidas provisórias não lhe autoriza a editar dispositivos legais que objetivem apresentar efeitos retroativos. Há no presente caso a utilização de uma competência em desacordo com a finalidade que lhe preside a instituição.

                        Sobre o tema, Celso Antônio Bandeira de Mello também afirma:

Com efeito, cada caso expressivo de uma competência traz insculpido em si um destino correspondente àquela competência. Ora, cada competência só pode ser exercitada para alvejar os fins em vista dos quais foi normativamente instituída; donde, os atos consectários de uma competência não podem ser expedidos senão para atender às finalidades a ela inerentes. Daí serem viciados de desvio de poder os comportamentos administrativos que miram dado objetivo público por meio de atos cujos escopos, à luz do direito positivo, sejam os de servir outros objetivos públicos, distintos dos que foram colimados.

                        É essa situação que está a ocorrer no presente caso. O Poder Executivo editou as Medidas Provisórias 2.061/00 e 2.061-1/00 com o objetivo de fazer com que os contribuintes optantes pelo REFIS, após 14 de setembro de 2000, ficassem sujeitos ao pagamento de parcelas devidas a partir de abril daquele ano. Esse objetivo era nitidamente inconstitucional, pois representava a edição de uma Medida Provisória com efeitos retroativos. O mesmo objetivo norteou a edição das Medidas Provisórias 2.061-2/00, 2.061-3/00, 2.061-4. Apenas alterou-se a redação do artigo 3º para que a pretensão do Poder Executivo tivesse foros de legalidade. A alteração realizada, contudo, não retira a mácula existente e vicia por completo o conteúdo das Medidas Provisórias ora impugnadas. A conversão da Medida Provisória 2.061-4 na Lei n  10.189/01 não serve para sanar o vício, pois a lei de conversão padece dos mesmos vícios existentes na Medida Provisória.

 

 

BIBLIOGRAFIA

BORNHOLDT, Max Roberto (coord./2001) ICMS/SC: Regulamento anotado. 1ª edição. Curitiba: Juruá.

CARRAZZA, Elizabeth Nazar (coord./1999) Direito Tributário Constitucional. 1ª edição. Curitiba: Max Limonad.

HARGER, Marcelo (2001) Princípios constitucionais do processo administrativo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Forense.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de (1992) Discricionariedade e controle jurisdicional . São Paulo: Malheiros Editores.

SUNDFELD, Carlos Ari (1997) Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros Editores.

TÁCITO, Caio (1997) Temas de direito público: estudos e pareceres. 1º vol.. Rio de Janeiro: Renovar.

 

 

 

 

 

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