Uma fábula constitucional
Era uma vez, um país que elaborou uma Constituição consagrando direitos contra o Estado. Essa previsão não foi à toa, pois o Estado tradicionalmente afrontava os direitos dos cidadãos. Garantiu-se a propriedade, que somente poderia ser desapropriada mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Protegeu-se a privacidade e a intimidade do cidadão. Nem mesmo o Estado poderia violá-la sem que houvesse decisão judicial. Assegurou-se o direito ao silêncio, e a tortura passou a ser crime inafiançável. As punições dependeriam da comprovação de culpa, e não poderiam ser aplicadas sem que os processos tivessem chegado ao seu fim.
Certa vez, no entanto, para desapropriar, o Estado depositou um valor inferior ao devido. Apesar desse fato, autorizou-se a posse do imóvel logo ao início do processo. Era uma obra de interesse público. A garantia constitucional se foi, mas era para o bem da sociedade. Em outra oportunidade, para reprimir a sonegação fiscal, relativizaram os direitos à privacidade e à intimidade. Permitiu-se que a receita federal obtivesse informações diretamente dos bancos, sem a intervenção do Poder Judiciário. A repressão do ilícito era um clamor da sociedade.
Autorizou-se, também, que as pessoas ficassem presas até que confessassem ou delatassem terceiros partícipes do suposto crime. Afirmou-se que passarinho fora da gaiola não canta e, com isso, foram-se o direito ao silêncio e a criminalização da tortura. Criou-se uma lei prevendo que empresas acusadas de corrupção poderiam ser punidas independentemente de culpa. Candidatos acusados de delitos de corrupção foram impedidos de participar de pleitos antes de serem condenados em instância final. Posteriormente, a prisão foi autorizada mesmo para processos ainda em andamento. A regra que previa que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença tornou-se letra morta. É pelo bem da sociedade.
Todas as mudanças, contudo, ocorreram sem que se alterasse a Constituição. Os representantes do Estado, que ela tinha por objetivo conter, mudaram-na por intermédio de “interpretação”. Apesar disso, são unânimes em dizer que a Constituição é a lei máxima do país, e todos devem observá-la. Será que isso é verdade ou ela virou uma fábula?