Nova pesquisa a respeito do deposito recursal como condição de admissibilidade do recurso em processo administrativo fiscal
Marcelo Harger
INTRODUÇÃO
Os entes federativos têm editado diversas leis, condicionando a admissibilidade do recurso em processo administrativo fiscal ao depósito prévio de uma parcela do tributo devido. Outras vezes, condiciona-se a admissibilidade do recurso à prestação de garantias. Essas leis são eivadas de diversos vícios. Os mais graves são, certamente, as ofensas aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Infelizmente, todavia, o judiciário não tem acatado essa linha de argumentação. Há, inclusive, decisões do Supremo Tribunal Federal, determinando que os princípios legais já mencionados não são afrontados pela exigência do depósito.
Ocorre que há outros princípios que também são ofendidos pela lei nº 9.639/98 e pela medida provisória 1.973/00. Esses princípios, entretanto, têm sido pouco explorados pelos advogados e doutrinadores que defendem os contribuintes brasileiros. Para demonstrar o acerto dessa afirmação, faremos uma análise da matéria sob o prisma do Direito Administrativo.
O MODO DE ATUAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS
É cediço que os agentes públicos exercem função. O exercício de função, conforme ressalta Celso Antônio Bandeira de Mello, retira o eixo metodológico do Direito Público da idéia de poder e o coloca em torno da idéia de dever. Desse modo, surgidos os pressupostos de fato ensejadores da competência administrativa, o administrador deve atuar com o objetivo de salvaguardar o interesse público.
O interesse público, todavia, não pode ser confundido com o interesse particular do Estado, enquanto sujeito de direitos e deveres. Cabe, aqui, lembrar a distinção realizada pela doutrina italiana entre os interesses primários e secundários do Estado, sintetizada de modo lapidar por Celso Antônio Bandeira de Mello: Interesse público ou primário é o pertinente à sociedade como um todo e só ele pode ser validamente objetivado, pois este é o interesse que a lei consagra e entrega à compita do Estado como representante do corpo social. Interesse secundário é aquele que atina tão-só ao aparelho estatal enquanto entidade personalizada e que por isso mesmo pode lhe ser referido e nele encarnar-se pelo simples fato de ser pessoa.
Essa distinção entre as duas espécies de interesse público importa sobremaneira para a correta compreensão do tema objeto do presente estudo. É que os interesses secundários somente podem ser perseguidos pelo Estado se não colidirem com os interesses primários. Isso significa que, caso haja colisão entre essas duas espécies de interesse, o interesse secundário torna-se inválido. Vale dizer, o Estado somente pode perseguir os seus interesses pessoais, quando estiverem de acordo com os interesses da sociedade
Poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que procedentes, ou de denegar pretensões bem-fundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados. Estaria, por tal modo, defendendo interesses apenas "seus", enquanto pessoa, enquanto entidade animada do propósito de despender o mínimo de recursos e abarrotar-se deles ao máximo. Não estaria, entretanto, atendendo ao interesse público, ao interesse primário, isto é, àquele que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos. Por isso os interesses secundários não são atendíveis senão quando coincidirem com interesses primários, únicos que podem ser perseguidos por quem axiomaticamente os encarna e representa
Os administrativistas, em geral, são unânimes quanto a essa conclusão em relação à Administração Pública. Ocorre que esse raciocínio também é aplicável em relação ao legislador. É que o legislador, no exercício de sua atividade, fica subordinado à Constituição. É a Constituição que estabelece implícita ou explicitamente quais são os interesses primários que devem ser buscados por todo o aparato estatal.
Essa situação, de sobreposição dos interesses secundários aos interesses primários, é que está a ocorrer em relação à exigência de depósito para o recurso no processo administrativo fiscal.
A LEGALIDADE COMO INTERESSE PRIMÁRIO DO ESTADO BRASILEIRO
A Constituição Federal, em seu artigo 1º, dispõe que a República Federativa do Brasil constitui-se
Uma das principais conseqüências dessa escolha é a imposição do princípio da legalidade aos órgãos públicos. O caput do art. 37 da Constituição reforça essa opção ao elencar a legalidade como princípio da administração pública.
A opção expressa pela legalidade faz com que se possa dizer que esta é um interesse primário do Estado brasileiro.
O PROCESSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO COMO INSTRUMENTO PARA A VERIFICAÇÃO DA LEGALIDADE DA CONDUTA DOS AGENTES PÚBLICOS
O processo nada mais é do que um instrumento a serviço do direito material. Essa noção, de processo enquanto instrumento, contudo, é vaga, enquanto não acompanhada da indicação dos objetivos a serem alcançados mediante o seu emprego. Todo instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se destina. O raciocínio teleológico há de incluir então, necessariamente, a fixação dos escopos do processo, ou seja, dos propósitos norteadores da sua instituição e das condutas dos agentes estatais que o utilizam.
Ocorre que a principal finalidade do processo administrativo tributário é a averiguação da legalidade do comportamento do agente público. Essa é a única conclusão possível a partir do pressuposto de que o processo é um instrumento para o exercício do Poder Estatal e que a atividade dos agentes públicos se resume à aplicação da lei ao caso concreto. É também a única conclusão possível, se considerarmos que o interesse público é indisponível e que não é dado ao Estado desconhecer as ilegalidades levadas ao seu conhecimento.
A utilização desse prisma de análise demonstra que a instituição de um depósito como condição de admissibilidade do recurso administrativo acaba por frustrar o objetivo do próprio processo, à medida que dificulta a análise da legalidade pela instância administrativa superior. Vale dizer, a pretexto de agilizar a cobrança de tributos (fim secundário), o legislador dificulta a análise da legalidade da conduta dos agentes públicos (fim primário), acabando por frustrar o próprio objetivo do processo administrativo.
Vale lembrar, aqui, o ensinamento de Couture ao dizer que nem o juiz, nem o legislador, nem o constituinte se podem afastar de certos postulados que são verdades de razão, verdades de ciências ou verdades de experiências, sem os quais não só se frusta o processo, como também o direito, a justiça e os outros valores jurídicos. Em última análise, há sempre um momento em que o direito pode sucumbir ante o processo.
Essa foi a opção do legislador ao instituir o depósito de 30% (ou prestação de garantia) como condição de admissibilidade do recurso no processo administrativo fiscal: optou por fazer o direito sucumbir ante o processo.
Verifica-se, assim, que não pode o legislador estabelecer a obrigatoriedade de um depósito recursal como condição para o acesso à segunda instância administrativa. Isso implica a inconstitucionalidade do art. 10 da lei nº 9.639/98 e do art. 32 da Medida Provisória nº 1.973/00 por ofensa direta ao princípio da legalidade.
BIBLIOGRAFIA
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo et al. (s/d) Teoria geral do processo. 10ª ed., São Paulo: Malheiros Editores.
COUTURE, Eduardo J. (1997) Interpretações das leis processuais. Rio de Janeiro: Editora Forense.
DINAMARCO, Cândido Rangel (s/d) A instrumentalidade do processo. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores.
ENTERRÍA, Eduardo Garcia de (1984) Reflexiones sobre la lei y los principios generalies del derecho. 1ªed., ……………: Editorial Civitas.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de (1992) Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros Editores.
________ (s/d) Curso de direito administrativo. 8ª ed., São Paulo: Malheiros Editores.